Como a Mídia Transforma Crimes em Entretenimento: O Caso Idaho

O assassinato de quatro estudantes universitários em Idaho, em novembro de 2022, ainda provoca espanto, incredulidade e um sem-fim de perguntas sem respostas. Com o julgamento do suspeito Bryan Kohberger marcado apenas para agosto de 2025 — quase três anos depois do crime —, a sensação é de que a verdade está cada vez mais difusa, não apenas pelo tempo que passa, mas porque o caso se transformou em um fenômeno midiático de proporções raras, daqueles que se instalam no imaginário popular e parecem resistir ao esclarecimento. Uma história macabra e aparentemente sem sentido, que ganhou camadas adicionais com a recente retomada do tema pelo programa Dateline e a estreia marcada para julho do documentário da Amazon One Night in Idaho: The College Murders, dirigido por Liz Garbus.

A essa altura, já se conhece a cronologia básica dos fatos: na madrugada de 13 de novembro de 2022, quatro jovens — Kaylee Goncalves, Madison Mogen, Xana Kernodle e Ethan Chapin — foram brutalmente assassinados com uma faca em uma casa compartilhada nos arredores da Universidade de Idaho. Duas outras pessoas estavam na casa e sobreviveram. Uma delas, inclusive, afirma ter visto o assassino mascarado. O caso, de início local, rapidamente se nacionalizou, e a prisão de Kohberger, doutorando em criminologia na Universidade Estadual de Washington, na virada do ano, trouxe tanto alívio quanto inquietação. Afinal, quem era ele? Qual era sua motivação? Por que entrou naquela casa? Como escolheu as vítimas — e, talvez mais perturbador, por que deixou duas delas vivas?

Nada disso foi esclarecido até agora. A promotoria sustenta que Kohberger foi o autor do crime e tem em mãos um conjunto de evidências que considera contundente: DNA dele na bainha da faca, registros de telefone e localização, filmagens de vigilância de um Hyundai branco, buscas na internet por métodos de assassinato e perfis de serial killers. A defesa, por sua vez, afirma que ele é inocente, não conhecia nenhuma das vítimas e que os indícios apresentados são circunstanciais, passíveis de contestação, além de insuficientes para condená-lo. Insinua que há outro suspeito. Insiste que a imprensa comprometeu a imparcialidade do processo.

O que há de fato é uma névoa. Um crime bárbaro, cometido aparentemente sem laço afetivo entre vítima e agressor. Um acusado que nega e não confessa. Uma testemunha que sobreviveu e viu o rosto do homem, mas não conseguiu impedir nada. E um país inteiro que, antes mesmo de qualquer julgamento, já formou suas convicções. Entre documentários, podcasts, fóruns, teorias em TikTok e Reddit, o que temos é uma cultura de “true crime” que consome cada detalhe como entretenimento e transforma os envolvidos em personagens. Kohberger virou uma figura obcecada, fascinada por serial killers. As vítimas, reduzidas a retratos sorridentes e promessas interrompidas. A testemunha, ora mártir, ora figura dúbia.

O juiz do caso emitiu uma “gag order”, proibindo que defesa e acusação falem fora dos autos. A intenção era evitar vazamentos, proteger o direito a um julgamento justo e isolar o júri da histeria coletiva. Mas é impossível conter o efeito Dateline. É impossível desviar da estreia iminente da Amazon. É impossível ignorar que, em 2025, o público terá assistido a duas temporadas completas de conteúdo investigativo sobre o caso, enquanto o processo criminal oficial nem terá começado.

Adiar o julgamento foi uma tentativa de esfriar a comoção. Mas na prática só deu tempo para que a comoção se espalhasse. Estamos diante de um dilema moderno: como julgar de forma imparcial um crime já imortalizado na cultura pop, com narrativas disputadas por jornalistas, escritores, influenciadores e detetives amadores? Como garantir justiça quando a própria noção de “julgamento justo” parece incompatível com a dinâmica da internet?

O caso lembra inevitavelmente A Sangue Frio, o clássico de Truman Capote, tanto pelo cenário bucólico quanto pela natureza aparentemente gratuita da violência. Mas há diferenças fundamentais. No crime da família Clutter, em 1959, passou quase um ano envolto a total mistério até que se encontrasse os assassinos, com a motivação, confissão e um desfecho relativamente rápido. Capote investigou o caso após ele já ter sido encerrado. Em Idaho, estamos vendo tudo acontecer em tempo real, com as câmeras já ligadas e os direitos autorais negociados antes da primeira audiência.

O que torna o crime de Idaho tão perturbador não é apenas sua brutalidade, mas seu mistério persistente. A ausência de respostas. A banalidade do mal encarnada em um suspeito que, até hoje, não explicou seu papel. A tensão entre o desejo de entender e o desejo de consumir a tragédia como espetáculo. O Dateline oferece mais peças do quebra-cabeça, mas nenhuma solução. A Amazon promete humanizar as vítimas, mas também antecipa um roteiro que deveria ser do tribunal.

Esse tipo de exposição midiática já começa a alterar a essência da justiça criminal. Em um sistema que depende de jurados imparciais, o que fazer quando os cidadãos convocados para cumprir esse papel já conhecem cada detalhe do caso? Já assistiram a todas as entrevistas com familiares, já seguiram as teorias, já se emocionaram com as recriações dramáticas? Quando a memória coletiva é moldada por clipes no YouTube, trailers com música emocional e threads virais no X (antigo Twitter), o que sobra de julgamento técnico?

Os tribunais tentam responder a isso com o que têm: mudança de jurisdição, anonimato dos jurados, ordens de silêncio, seleção cuidadosa. Mas a verdade é que os recursos jurídicos clássicos já não são páreo para a velocidade da informação. O que se vive hoje é um paradoxo cruel: ao mesmo tempo em que se cobra transparência e atenção para as vítimas, o excesso de informação ameaça a própria integridade do veredito.

É preciso repensar os limites entre informação e influência. O risco é que o tribunal se torne apenas um palco final de uma peça já encenada publicamente, onde o réu entra condenado ou absolvido antes mesmo de abrir a boca. Mais grave ainda: que as vítimas deixem de ser vistas como pessoas reais para se tornarem arquétipos de inocência ou mártires de um roteiro comercial. Ou que o público comece a confundir justiça com narrativa — e veredito com fan service.

Não há solução fácil. Adiar julgamentos talvez não resolva. Proibir reportagens tampouco é viável em democracias. Talvez seja o momento de discutir a criação de zonas de silêncio informacional temporárias em torno de certos processos — um conceito difícil de implementar, mas necessário de debater. Outra possibilidade seria reforçar o treinamento de jurados, com acompanhamento psicológico e filtros de mídia antes do processo, algo que hoje parece impraticável, mas que pode se tornar imprescindível.

Porque mais do que nunca, o risco não é apenas condenar inocentes ou absolver culpados, mas perder a própria confiança no sistema. Se os vereditos passam a ser percebidos como produto de histeria coletiva ou de campanhas narrativas bem conduzidas, o que resta da justiça? Em última instância, o caso de Idaho não é só sobre quem matou quatro jovens. É um teste para sabermos se ainda somos capazes de julgar com serenidade em tempos de excesso de informação. E se falharmos, talvez o crime que Kohberger ou outro cometeu não seja o único irreparável.


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