The Day After: Filme que Mudou a Percepção da Guerra Nuclear

Parar o mundo antes das redes sociais e Internet demandava uma combinação poderosa, muito maior e rara do que os dias atuais. Claro que já ouviu isso antes, mas é uma verdade que as gerações com menos de 40 anos não terá como entender plenamente. No caso de TV e cinema, havia meses ou anos de diferença de lançamentos, criando expectativas e perdendo a força que hoje a simultaneidade proporciona. Dentro desse contexto, ainda é impressionante o impacto de um filme feito para TV que mudou o curso da política internacional, um período onde o início da Terceira Guerra Mundial – como resultado da Guerra Fria – era muito real.

Lançado em 20 de novembro de 1983 pela rede ABC, The Day After não foi apenas um filme para televisão — foi um terremoto cultural e político. Exibido no auge da Guerra Fria, o longa dirigido por Nicholas Meyer mostrou, com realismo inédito para a época, os efeitos devastadores de uma guerra nuclear sobre civis comuns em uma cidade do interior dos Estados Unidos. O filme expôs o que aconteceria nas horas e dias após um ataque, com cenas que marcaram uma geração, geraram pânico, comoveram líderes globais e mudaram os rumos da política nuclear americana.

A gênese do projeto veio de Brandon Stoddard, então presidente da ABC Motion Picture Division, que após assistir ao filme The China Syndrome percebeu o potencial do entretenimento em provocar mudança social. Queria um filme que mostrasse não os generais nem os presidentes, mas o cidadão comum sob ataque nuclear. O roteirista Edward Hume foi incumbido da missão, e Nicholas Meyer, consagrado por Star Trek II, assumiu a direção. Inicialmente, o filme teria 180 minutos e seria exibido em duas noites. Meyer considerou o roteiro excessivo e propôs condensá-lo em um único evento de duas horas e vinte minutos. A ABC hesitou, mas cedeu — ainda que tenha imposto cortes significativos posteriormente.

Durante seis meses, Meyer e a emissora entraram em conflito. A ABC temia o teor gráfico e as implicações políticas da obra. Vários cortes foram exigidos: cenas de crianças traumatizadas, pesadelos, execuções militares e efeitos de radiação severa foram removidos ou suavizados. Meyer e seu editor, Bill Dornisch, resistiram. Dornisch acabou demitido, e o próprio Meyer abandonou o projeto por um período. Quando outros editores fracassaram em satisfazer a emissora, ele foi reconvocado. O resultado final foi uma versão de 120 minutos — consideravelmente mais branda que o corte original, mas ainda assim devastadora. Mesmo com a censura, imagens de explosões, colapsos sociais, queimaduras e sofrimento radioativo chocaram o público.

Ao mesmo tempo, uma campanha paralela ganhou força: Josh Baran e Mark Graham, ativistas antinucleares, conseguiram uma cópia pirata do filme antes de sua exibição. Batizada de The Day Before, a iniciativa buscava “sequestrar” o marketing da ABC, promovendo exibições antecipadas em igrejas, bares e faculdades, reunindo líderes pacifistas, jornalistas e até o Papa. Segundo a revista Variety, tratou-se da “maior campanha de relações públicas da história”, e forçou a ABC a manter o filme no ar, mesmo diante da pressão política. Rumores davam conta de que o próprio presidente Ronald Reagan tentou impedir a exibição.

A estreia foi precedida por comerciais intensivos e pela distribuição de mais de meio milhão de “guias do espectador”, que alertavam para o conteúdo gráfico e preparavam o público para a experiência. John Cullum, um dos atores, apareceu antes do filme pedindo aos pais que assistissem com os filhos e discutissem os temas levantados. Apesar disso, várias cenas planejadas ficaram de fora — como vistas aéreas de Kansas City durante detonações, combates da OTAN contra o Pacto de Varsóvia na Alemanha e sobreviventes saqueando supermercados ou brigando por comida.

Cenas de efeitos especiais extremas, incluindo derretimento de rostos, queimaduras até os ossos, mortes por estilhaços, e sufocamento em abrigos, foram cortadas. Um pelotão de fuzilamento de soldados americanos, cenas de doenças agudas por radiação e um confronto entre estudantes pela sobrevivência também foram excluídos da transmissão inicial, embora algumas dessas imagens tenham sido restauradas em lançamentos posteriores em vídeo doméstico.

Na noite da exibição, 38,5 milhões de lares assistiram ao filme, totalizando mais de 100 milhões de pessoas — um recorde absoluto para um telefilme. Após a transmissão, um debate ao vivo foi conduzido por Ted Koppel com figuras como Henry Kissinger, Carl Sagan, Elie Wiesel e Robert McNamara. A repercussão foi massiva. The Day After estampou as capas das revistas Time, Newsweek, TV Guide e US News & World Report. Alguns críticos acharam o filme “muito brando”, outros acusaram de “sensacionalismo”, mas todos reconheceram seu impacto.

No Brasil, ainda em tempos de Ditadura Militar, o longa The Day After foi exibido pela primeira vez no Brasil não na televisão, mas nos cinemas. Sua estreia ocorreu em 19 de janeiro de 1984 e apenas nos anos 1990s chegou à TV Globo. Versões em VHS eram disponíveis em locadoras.

Nos Estados Unidos, o próprio presidente Reagan assistiu ao filme em uma sessão privada em outubro de 1983. Em seu diário, escreveu que foi “muito eficaz e profundamente deprimente”, e admitiu que mudou sua perspectiva sobre o potencial de uma guerra nuclear. Meyer foi informado que, durante a exibição para o Estado-Maior Conjunto, os militares ficaram “petrificados”. Embora não tenha havido um telegrama oficial de agradecimento, como um mito posterior afirmaria, há indícios de que o filme foi discutido dentro da Casa Branca e influenciou as decisões de Reagan.

Quatro anos depois, em 1987, Reagan assinaria com Mikhail Gorbachev o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que eliminou uma classe inteira de mísseis nucleares. Em suas memórias, o ex-presidente americano traçaria uma linha direta entre The Day After e a decisão de buscar a redução de armamentos. O filme também impactou fora dos EUA: em plena era da glasnost, foi exibido na televisão soviética, e um grupo de congressistas americanos chegou a propor sua transmissão no país rival como ferramenta diplomática.

Em termos técnicos, o filme foi elogiado por seus efeitos visuais — apesar dos cortes — e recebeu 12 indicações ao Emmy, vencendo duas: melhor direção de arte e edição de som. Também ganhou o prêmio do Writers Guild e recebeu reconhecimento de críticos e acadêmicos ao longo das décadas. O diretor Nicholas Meyer escreveu posteriormente que The Day After “minimizou os efeitos reais da guerra nuclear para conseguir contar uma história”, e pediu que a ABC incluísse essa advertência no fim do filme, junto com uma lista de livros sobre o tema.

Décadas depois, seu impacto permanece. O documentário Television Event (2020) revisitou sua história e mostrou como a arte pode provocar mudanças reais. The Day After não foi apenas uma obra de ficção — foi uma intervenção cultural, um alerta sombrio e, talvez, uma pequena contribuição para evitar o pior.


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