We Were Liars: privilégios, culpas e segredos sob as ruínas da elite americana

A gente sabe quando reclama de barriga cheia quando esbarra com conteúdos dramáticos folhetinescos e fica se perguntando como não foram usados no formato de novelas. É que no Brasil nossas novelas são espetaculares e duram até 8 meses. Lá fora, as novelas levam anos e são mal produzidas. Assim, há séries longas de 8 a 10 episódios onde o dramalhão se arrasta em o menor constrangimento de flertar com o cafona. Sim, é o caso de We Were Liars, com a diferença que se você não conhece o best seller que deu origem à série pode se surpreender com a virada, que só acontece no último episódio. Tenho dúvidas se chegará até lá ainda com paciência.

Baseada no best-seller de E. Lockhart e adaptada para a televisão pelas veteranas do drama adolescente Julie Plec (The Vampire Diaries) e Carina Adly Mackenzie (Roswell), We Were Liars surge no Prime Video como uma tragédia emoldurada por paisagens idílicas, memórias fragmentadas e os escombros de uma linhagem marcada por egoísmo, racismo e ressentimento. A série, assim como o livro, gira em torno de Cadence Sinclair Eastman e seu clã chamado de “The Liars” – um quarteto inseparável de adolescentes criados à sombra de um império de velhas fortunas e normas sociais rígidas. Mas o que começa como uma crônica de veraneios glamorosos em uma ilha particular da Nova Inglaterra logo se revela um misto entre Big Little Lies e The Sixth Sense, com cadáveres simbólicos e reais espalhados pelo caminho, também com um aspecto meio “Kennedyano” porque é sobre um clã tradicional e milionário americano que passa o verão em sua ilha particular em Martha’s Vineard (onde os Kennedys têm casa).

A abertura da série, com o corpo inconsciente de Cadence sendo lançado à praia, aciona de imediato um alarme narrativo: nada do que veremos será confiável. A jovem herdeira, neta do patriarca Harris Sinclair (interpretado com frieza quase ritualística por David Morse), retorna à ilha meses depois de um acidente misterioso que lhe apagou a memória e deixou cicatrizes tanto físicas quanto emocionais. O que aconteceu naquele verão? Por que ninguém – nem sua mãe, nem suas tias, nem os primos com quem cresceu – ousa lhe contar a verdade?

A resposta, claro, é devastadora. Mas o mérito da adaptação não está apenas em manter o célebre twist final do livro (sim, os Liars estão mortos o tempo todo), mas em expandir os temas latentes da obra original com camadas mais sombrias, psicológicas e sociais. A série assume a estrutura de thriller atmosférico dividido entre dois tempos: o “antes” do incêndio e o “depois”, em que Cadence conversa com os fantasmas sem saber que são, de fato, fantasmas.

A família Sinclair é apresentada como um relicário da aristocracia americana: rica, branca, esteticamente impecável – e profundamente corrupta em seus valores. O avô Harris é a figura emblemática desse império decadente. Cadence, ao enfrentá-lo, denuncia o racismo velado por trás de suas decisões, especialmente no que diz respeito ao relacionamento dela com Gat (Shubham Maheshwari) e de sua tia Carrie com Ed, um homem indiano. A série amplia essa tensão racial – apenas insinuada no livro – e a coloca no centro do conflito geracional: Cadence lê Caste, de Isabel Wilkerson, enquanto Harris solta a clássica desculpa liberal de que teria votado em Obama “um terceiro mandato, se pudesse”.

Mas o veneno não está só no topo da pirâmide Sinclair. As três irmãs – Penny, Carrie e Bess – revelam falências afetivas que se desdobram nos filhos. A série mergulha nos casamentos falidos, nas traições, nos abusos encobertos e na competição passiva-agressiva por atenção e herança. Carrie é a mãe do perfeccionista Johnny, cujo sofrimento ganha nova dimensão ao ser retratado como um jovem gay, vítima de bullying e chantagem, preso num ciclo de vergonha e violência. Bess é flagrada numa relação extraconjugal, enquanto o marido esvazia seu fundo fiduciário sem culpa. Penny, a mãe de Cadence, aparece como a zeladora silenciosa do silêncio – a que mais lucra com a amnésia da filha.

Os adolescentes, os “Liars”, são herdeiros não apenas de fortunas, mas de uma estrutura emocional podre. A ideia de incendiar o casarão da família – a mansão Clairmont – nasce como um gesto simbólico: uma tentativa desesperada de destruir o centro irradiador de um legado de dor. “E se a gente fizesse uma bagunça tão grande que só um Sinclair conseguiria limpar?”, pergunta Cadence antes de sugerir o plano. A metáfora, porém, escapa de controle. O fogo não apenas consome o passado: consome os próprios incendiários. O twist, fiel ao livro, revela que Cadence sobreviveu ao incêndio enquanto os outros três morreram tentando salvar os cães e uns aos outros – uma ironia cruel, considerando que ela própria hesitou para resgatar o colar de pérolas da avó. É a materialidade vencendo a moralidade mais uma vez.

O último episódio eleva ainda mais o grau de tragédia: Cadence joga as pérolas no mar e diz a uma repórter da Time que “não acredita mais em contos de fadas”, recusando o papel de herdeira Sinclair. Mas a série não termina aí. Em uma cena final que não existe no livro, Carrie encontra o fantasma de Johnny em sua casa, insinuando que o trauma coletivo dos Sinclair ainda não terminou – e abrindo caminho para uma possível segunda temporada baseada no livro Family of Liars, o prequel publicado por Lockhart em 2022. Será?

We Were Liars se revela, assim, mais do que um drama adolescente com reviravolta. É um estudo sobre culpa, privilégios e as mentiras (individuais e estruturais) que sustentam famílias aparentemente perfeitas. A direção aposta em contrastes visuais – o sol vibrante da ilha contra os pesadelos internos de Cadence – e o elenco jovem, liderado por Emily Alyn Lind (a única coisa razoável do revival de Gossip Girl), equilibra bem a leveza da juventude com o peso da tragédia. Mas talvez o que mais impressione seja a maneira como a série consegue colocar em xeque o conceito de legado: a ideia de que herdar algo é, inevitavelmente, continuar reproduzindo o mesmo ciclo. Cadence, ao final, escolhe quebrar esse ciclo. Mas a pergunta que paira – como a névoa sobre Beechwood Island – é: e os que ficaram? O fogo apagou ou apenas mudou de forma?

Esse é o verdadeiro dilema de We Were Liars: ninguém sobrevive ileso quando o passado é construído sobre as cinzas de mentiras tão convenientes quanto mortais.


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