Nos últimos meses, dois filmes sobre ícones da música estrearam com trajetórias opostas. Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso, tornou-se um sucesso estrondoso de bilheteria no Brasil, embalado pela força das canções que marcaram gerações e pelo carisma atemporal de seu protagonista. Já A Complete Unknown, sobre Bob Dylan, dirigido por James Mangold e estrelado por Timothée Chalamet, segue colhendo aplausos e está disponível em streaming. Duas cinebiografias, dois estilos, duas promessas de mergulho em artistas indecifráveis — que, no entanto, se contentam em molhar os pés.

A biopic musical virou, nos últimos anos, um subgênero autônomo. Com isso, trouxe suas armadilhas recorrentes: muita música, pouca substância; ênfase na “imitação” física do artista, em detrimento da tentativa de alcançar sua alma; roteiros cada vez mais ditados por herdeiros ou pela indústria fonográfica. O resultado? Filmes vistosos, que agradam aos fãs e às premiações, mas que muitas vezes falham na missão mais simples e mais difícil de uma biografia: dizer algo verdadeiro.
Ney Matogrosso e Bob Dylan jamais se encontraram, nem se aproximaram musicalmente — Ney, tropicalista, libertário da estética e do corpo; Dylan, bardo hermético do folk norte-americano, cantor de frases ambíguas e antiautobiográficas. Mas são, ambos, figuras de mistério e ruptura. Divisivos. Excêntricos. Construíram-se no avesso de convenções. Por isso mesmo, talvez, sejam artistas difíceis de filmar. E Homem com H e A Complete Unknown, cada um à sua maneira, mostram que é mais fácil encenar suas superfícies do que encarar seus abismos.


O filme de Ney tem potência de show, mas roteiro de videoclipe. É generoso em números musicais — às vezes até excessivo — e acerta ao mostrar o impacto do artista na cena brasileira. Mas, ao tentar equilibrar o personagem público e a história privada, acaba escorregando em uma superficialidade que compromete o todo. O drama com o pai repressor é recorrente, mas não se aprofunda. A trajetória do primeiro amor, trágica e formadora, é deixada pelo caminho. As escolhas musicais, que foram tudo menos óbvias — de Secos & Molhados à fase mais experimental e andrógina — sequer são problematizadas. Ney atravessa cidades, formações, transformações estéticas e emocionais… e o filme parece acompanhar sem realmente investigar. É como se estivéssemos sempre do lado de fora do espelho, admirando a imagem sem arriscar quebrá-la.
A comparação com Cazuza — O Tempo Não Para, inevitável, acentua essa fragilidade. Lá, o retrato do cantor — ainda que moldado pela aprovação da família — constrói-se com mais contundência. Cazuza, no filme de Matogrosso, aparece como alguém contraditório, impulsivo, amoroso e cruel, talentoso e autodestrutivo. Há afeto e ruído. Em Homem com H, Ney Matogrosso atravessa os anos com uma aura quase mítica, como se já viesse pronto. Cazuza aparece como um personagem vibrante, em constante conflito; Ney, como um símbolo em reverência permanente. Até a presença de Cazuza em Homem com H é protocolar, rasa. E isso enfraquece não apenas o retrato do colega, mas o entorno artístico e político no qual Ney viveu e se construiu.

Do outro lado do mundo, A Complete Unknown se propõe a evitar exatamente esse tipo de beatificação. Ao focar num único momento da vida de Dylan — a controversa transição do violão folk para a guitarra elétrica, em 1965 —, Mangold tenta construir um retrato mais impressionista. O filme não quer contar toda a vida de Dylan. Quer entendê-lo num instante de ruptura. É uma escolha válida, até corajosa. Mas que esbarra num impasse semelhante: ao fugir da armadilha da cronologia, o filme evita também aspectos centrais da vida pessoal do artista. Sua namorada e futura esposa, Sara Lownds, por exemplo, é ignorada ou reduzida. O impacto de suas relações afetivas, suas perdas, suas crises criativas — tudo isso fica à margem. As músicas, mais uma vez, ocupam o espaço que as emoções não chegam a preencher.
Timothée Chalamet entrega uma performance meticulosa, mas ainda é difícil saber se encontrou Dylan ou apenas sua silhueta. E talvez o filme não tenha ajudado: ao se cercar de reverência à figura pública, evita tocar nas zonas mais ambíguas. Dylan, afinal, sempre resistiu à autodefinição. Mas resistir à autodefinição não deveria ser desculpa para o cinema resistir a buscar algo mais.

É por isso que Rocketman, de 2019, segue sendo o exemplo mais honesto e cinematográfico entre as biopics musicais recentes. O filme de Dexter Fletcher sobre Elton John não teve medo do excesso, nem da dor. Misturou fantasia e trauma, sem se prender à cronologia ou à fidelidade documental. Foi menos biográfico no sentido estrito, e mais emocionalmente verdadeiro. As músicas não interrompiam a narrativa — eram parte dela. Cada número musical era uma janela para o que o protagonista não conseguia verbalizar. E Elton não foi apresentado como herói ou vítima, mas como alguém em fratura.
Bohemian Rhapsody, por sua vez, é talvez o exemplo mais emblemático das contradições do subgênero. Premiado, amado pelo público e consagrado por Rami Malek com um Oscar de melhor ator, o filme sobre Freddie Mercury parece mais preocupado em agradar do que em compreender. A narrativa é higienizada, os conflitos internos do protagonista são amenizados ou deslocados, e os momentos de maior dor — como a descoberta da AIDS ou sua relação com a sexualidade — são tratados com cautela quase publicitária. A música, mais uma vez, é gloriosa, mas serve como cortina de fumaça para os silêncios da história. Ao contrário do que Freddie costumava fazer no palco, o filme se recusa a provocar. Em vez disso, entrega um retrato domesticado, onde o mito é embalado para consumo fácil — e o homem real se perde no som.

Outro título impossível de ignorar nesse cenário é Elvis, de Baz Luhrmann, que embalou a cinebiografia do Rei do Rock num espetáculo visual grandioso, mas igualmente enviesado. A atuação hipnótica de Austin Butler foi celebrada, mas o roteiro evita conflitos mais profundos, especialmente em relação ao envolvimento de Elvis com o racismo estrutural da indústria musical americana, sua dependência química e o papel controlador do Coronel Tom Parker — que, ironicamente, é o narrador do filme. O resultado é mais uma cinebiografia onde a forma supera o conteúdo, e onde a encenação da lenda engole a complexidade do homem por trás do mito.
Essa fratura, que deveria ser a essência de qualquer cinebiografia, parece ter sido evitada tanto em Homem com H quanto em A Complete Unknown. Ney Matogrosso, com toda a sua intensidade, permanece um enigma admirado. Dylan, com toda a sua opacidade, permanece um enigma respeitado. Mas não há rachadura nos filmes. Não há sombra. E talvez seja justamente isso que falta: menos espetáculo, mais risco. Menos performance, mais verdade.

A música, nesses filmes, funciona como sedução — mas também como cortina. E quando a trilha sonora substitui o conflito, o cinema cede espaço à celebração plástica, mas esvaziada. Ney e Dylan são artistas que transformaram dor, repressão e contradição em arte. Mas seus filmes, por medo ou por estratégia, parecem transformá-los em personagens já digeridos. O público aplaude. A crítica admira. Mas a pergunta permanece: o que exatamente nos foi revelado?
Por enquanto, temos dois filmes que nos lembram da grandeza de seus protagonistas — mas que não têm coragem de descascar suas máscaras. E se o cinema biográfico quer mesmo iluminar o que se esconde por trás das lendas, talvez precise primeiro se despir do medo de desapontar. Afinal, não é só a música que conta. É o silêncio entre os versos.
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