Eu sei que da mesma forma que Round 6 (ou Squid Game) virou febre em 2020, hoje é comum ter gente torcendo nariz para a série. Sigo considerando uma das mais profundas, pertubardoras e inovadoras dos últimos tempos, um exemplo de como é possível contar uma história do bem contra o mal por lentes realistas e atuais. Vou elaborar com spoilers.
Vi Round 6 como se estivesse olhando para um espelho distorcido da sociedade — ou talvez só um espelho fiel, com a luz crua e sem filtros. A série é espetacular, sim, no sentido estético e narrativo. Mas o que mais me assombrou foi o quanto ela é um estudo cruelmente realista da natureza humana, em todas as suas camadas: a ambição, a ganância, a destruição progressiva da alma, a frieza calculada de quem desiste de sentir, o desespero animal por sobrevivência a qualquer custo. Ali ninguém é herói — exceto um.

Seong Gi-hun (456) é apresentado inicialmente como o tipo de pessoa que aprendemos a julgar: um falastrão, endividado, pai ausente, quase infantil na sua falta de noção. Mas Round 6 não tem pressa. Vai revelando, em camadas, que por trás daquele caos existe um limite moral, algo muito raro naquele universo. Gi-hun é frágil, sim, mas não é podre. Ele é ingênuo, mas não é corrompido. E, ao contrário de todos os outros, quando chega a hora da escolha final, ele não vende a própria alma.
Enquanto isso, do outro lado da estrutura, temos o Front Man (Hwang In-ho) — figura de autoridade, ex-vencedor, hoje guardião do sistema. Mas por trás da máscara e do silêncio, o que ele busca não é poder. O que ele precisa, desesperadamente, é provar para si mesmo que ninguém se salva. Que todos, diante do abismo, escolhem cair.
O jogo pessoal do Front Man é silencioso, mas imenso. Ele já caiu. Já matou, já esqueceu o irmão, já vestiu o papel de executor. Mas para continuar vivendo com esse fardo, ele precisa acreditar que não havia alternativa. Que todos caem. Que a bondade é uma ilusão infantil. Ele precisa, obsessivamente, que Gi-hun também quebre.
E Gi-hun não quebra.
Sim, ele sofre. Sim, ele hesita. Ele até pensa em fugir. Mas escolhe ficar. Escolhe lutar. Escolhe salvar uma vida que não é a dele. Morre por ela. E nesse momento, o que se rompe não é Gi-hun — é o Front Man.
Porque ali, diante do gesto final de Gi-hun, a mentira que sustentava a alma dele implode. Ele vê, com os próprios olhos, a prova viva (e logo depois, morta) de que era possível sair dos jogos sem matar o que há de bom em si. Que não era inevitável virar aquilo que ele se tornou. E isso, para alguém que passou anos justificando o próprio vazio, é insuportável.
A série nunca diz isso com todas as letras. Mas está lá, no silêncio dele. No modo como observa. No momento em que poupa o bebê. Ele não pune Gi-hun. Ele não interrompe o gesto. Ele só assiste. Porque pela primeira vez, talvez, ele não sabe o que fazer.

E quando cortamos para a cena final, em Los Angeles, com Cate Blanchett repetindo o ritual do recrutamento num café americano, o ciclo parece continuar. O jogo está se globalizando, mais sofisticado, mais sutil, com rostos belos e vozes calmas. Mas algo mudou. O Front Man já não está mais no controle. Não por fora, mas por dentro. Ele viu que existe escolha. Que existe pureza. Que existe alguém que não quebrou.
E isso o condena.
A verdadeira punição de In-ho não é morrer. É viver com a consciência de que ele não foi vítima do sistema — ele foi cúmplice por escolha. Que enquanto o irmão dele tentou lutar até o fim, ele se rendeu cedo demais. E que, sim, talvez exista bondade no mundo. Só que ele não foi capaz de sustentá-la.
Round 6 nos mostra que o maior horror não é perder a vida — é perder a alma e ter que viver com isso. Gi-hun, com todas as falhas e dores, morreu inteiro. O Front Man, com todo o poder e status, vive despedaçado.
É isso que torna essa série tão perturbadora. E tão real.
Falarei mais sobre ela, mas é, sem exageros, uma série que merece ser vista e discutida.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
