Smoke, a nova série da Apple TV+, é apresentada como uma ficção criminal sobre incêndios criminosos, mas está longe de ser apenas um exercício de suspense roteirizado. Criada por Dennis Lehane — o mesmo responsável por Black Bird — a série é uma mistura sombria e provocadora entre o thriller psicológico e a recriação livre de um caso real que assombra os arquivos criminais dos Estados Unidos até hoje: o do bombeiro e investigador de incêndios John Leonard Orr, responsável por centenas — talvez milhares — de incêndios na Califórnia entre os anos 1980 e 1990.

Na série, Taron Egerton interpreta Dave Gudsen, um investigador de incêndios brilhante, carismático e aparentemente íntegro, que se une à detetive Michelle Calderone (vivida por Jurnee Smollett) para investigar uma onda de incêndios criminosos na Costa Oeste dos EUA. No entanto, no final do segundo episódio, a máscara começa a cair: Dave é, na verdade, um dos dois incendiários que eles procuram. Ele está acendendo os incêndios que finge investigar — e usando sacos de batata frita como material inflamável em praças de alimentação de shoppings.
Essa reviravolta, embora pareça chocante para quem não conhece o caso real, é inspirada diretamente na trajetória de John Leonard Orr, que também era um investigador de incêndios — e simultaneamente o próprio incendiário que fingia caçar. Orr atuou por quase três décadas no Corpo de Bombeiros de Glendale, na Califórnia, sendo responsável por cerca de 2.000 incêndios, segundo estimativas oficiais. Um dos mais notórios foi o de 1984, no Ole’s Home Center, em South Pasadena, que matou quatro pessoas, incluindo uma criança de apenas dois anos.
Orr usava dispositivos incendiários com temporizador — muitas vezes confeccionados com fósforos, cigarros e papel celofane — e, como Gudsen na série, comparecia às próprias cenas do crime, analisando “objetivamente” os estragos que ele mesmo havia causado. A obsessão de Orr pelo fogo era tamanha que ele chegou a escrever um livro, Points of Origin, que contava a história de um bombeiro que era também um incendiário. Detalhes do livro batiam com cenas de incêndios reais que ainda estavam sendo investigadas, e o manuscrito foi usado como evidência no julgamento.

Depois de meses de investigação, com escutas e rastreadores colocados em seus veículos, John Leonard Orr foi preso em 1991. Em 1992, foi condenado a 30 anos de prisão por três acusações de incêndio. Dois anos depois, enfrentou novos julgamentos: foi acusado de 21 outros incêndios e de quatro homicídios, sendo condenado à prisão perpétua sem direito à liberdade condicional. Ele continua preso até hoje, na Penitenciária Estadual de Centinela, na Califórnia, e ainda alega inocência.
A série Smoke toma esses elementos como base, mas os desloca para um contexto mais contemporâneo. O condado fictício de Umberland, a ambientação moderna, a relação com redes sociais e os dilemas éticos do protagonista formam um mosaico que é tanto uma atualização narrativa quanto um comentário sobre como o mal pode se esconder atrás de títulos e funções de autoridade. Dave Gudsen, assim como Orr, não apenas ateia fogo — ele quer ser o primeiro a chegar, o herói do próprio desastre, o nome que aparece no relatório final como salvador, não como criminoso.
O destaque, sempre é Egerton, que já interpretou 5 papéis baseados em pessoas reais (ou inspirados diretamente por elas), e vem se consolidando como um ator de destaque nesse nicho — especialmente em dramas biográficos com carga emocional ou psicológica intensa.
Dennis Lehane e Taron Egerton já haviam colaborado em Black Bird, outra série criminal da Apple baseada em fatos reais, com ótima recepção crítica. Em Smoke, os dois aprofundam essa parceria: Egerton está novamente em grande forma, entregando um personagem que transita entre o charme e a ameaça com uma precisão desconcertante. Seu Dave Gudsen é um homem que seduz pela inteligência, pela sensibilidade e pelo compromisso ético — até que, pouco a pouco, descobrimos que tudo isso é uma performance. Ele não investiga os incêndios; ele os coreografa.

Mas se há acertos indiscutíveis em Smoke, também há deslizes. A direção é elegante, mas por vezes excessivamente estilizada. O uso constante de câmera lenta, paleta escura e trilha sonora melancólica transforma a narrativa em algo quase onírico — o que enfraquece o impacto de certos acontecimentos. Em vez de potencializar o horror real do que está sendo mostrado, a forma às vezes sufoca o conteúdo. O público sente que está assistindo a algo cuidadosamente embalado, polido — e isso contrasta com a brutalidade da história que se pretende contar.
Ainda assim, há mérito no que a série faz: ela não tenta ser documental, nem esconde sua licença poética. O próprio Lehane declarou que queria construir um personagem “inspirado” em Orr, mas que funcionasse num tempo e espaço próprios. A série Smoke é, nesse sentido, um híbrido entre o real e o simbólico — uma investigação não apenas de um incendiário, mas da pulsão humana pelo controle, pela criação destrutiva, pelo desejo de reconhecimento a qualquer custo.
Se você procura uma série criminal convencional, talvez se frustre com o ritmo e o estilo de Smoke. Mas se aceita o convite para entrar na mente de alguém que precisa acender incêndios para sentir que existe — e que ainda assim quer ser admirado —, então essa é uma história que vale o mergulho. O fogo, aqui, não é apenas literal: é também o símbolo do ego, da vaidade e da mentira institucionalizada. E algumas cinzas, por mais que esfriem, continuam contando uma verdade incômoda sobre quem somos quando ninguém está olhando.
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