Quando a Música Sabe Sonhar: Kate Bush, Reich e a Máquina de Fazer Chover

Entre as composições mais singulares da carreira de Kate Bush, Cloudbusting, lançada em 1985 no aclamado álbum Hounds of Love, é um dos exemplos mais tocantes de como a artista transforma narrativas complexas e densas em música pop emocional e inventiva. Inspirada no livro A Book of Dreams, de Peter Reich, a canção narra a relação entre um menino e seu pai, o psicanalista e cientista Wilhelm Reich, do ponto de vista da criança. O resultado é uma obra profundamente sensível, que entrelaça ternura, perda e fé cega com uma melodia hipnótica e uma estrutura musical não convencional — sem refrão, guiada por arranjos crescentes de cordas e batidas repetitivas que evocam a marcha do tempo e da memória.

“I still dream of Orgonon / I wake up crying…”
(“Ainda sonho com Orgonon / Acordo chorando…”)
Logo nos primeiros versos, Bush nos coloca na mente do filho adulto, que revive em sonho as lembranças do laboratório onde viveu com o pai. Orgonon era o nome da casa e centro de pesquisa de Reich, no estado do Maine. Com poucas palavras, a música evoca a profundidade do trauma e da saudade.

A história por trás da música é real e envolve um dos personagens mais controversos do século 20. Wilhelm Reich foi discípulo de Sigmund Freud, mas se afastou da psicanálise tradicional ao desenvolver ideias próprias — entre elas, a teoria do “orgone”, uma suposta energia vital presente em todos os seres vivos. Reich acreditava que o bloqueio dessa energia poderia causar doenças físicas e psicológicas, e construiu dispositivos, como o “acumulador de orgone”, para canalizá-la. Um de seus projetos mais peculiares foi a “cloudbuster” — uma máquina que ele dizia ser capaz de manipular nuvens e provocar chuva, o que deu nome à canção de Bush.

Nos anos 1950, suas pesquisas foram consideradas pseudocientíficas e perigosas pelas autoridades norte-americanas. Em 1956, após desobedecer uma ordem judicial que proibia a distribuição de seus aparelhos e escritos, Reich foi condenado à prisão. Morreu sozinho na penitenciária federal de Lewisburg, Pensilvânia, em 1957, vítima de insuficiência cardíaca, apenas um dia antes de uma audiência que poderia ter reduzido sua sentença. Tinha 60 anos. Seu legado, até hoje, é motivo de polêmica — dividido entre seguidores fervorosos e descrédito científico.

Ao transformar essa história — que envolve ciência marginal, repressão estatal e o amor filial — em música, Kate Bush faz algo raro no cenário pop: ela cria empatia para uma figura histórica polêmica sem jamais ceder à didática. Sua perspectiva não é a do cientista, mas a do filho, Peter, cuja infância foi marcada por experiências excêntricas e pela brutal separação do pai. Em vez de narrar a trajetória de Reich com distanciamento, Bush mergulha na subjetividade do menino.

“I can hear you / Your words…”
(“Consigo ouvir você / Suas palavras…”)
Esse trecho delicado remete às vozes do passado que persistem, como se o pai continuasse falando mesmo ausente — um lamento íntimo transformado em poesia.

Essa capacidade de humanizar temas densos e intelectuais é uma das marcas de Kate Bush ao longo de sua carreira. Cloudbusting não é seu único mergulho na literatura e na psique. Em Wuthering Heights, sua estreia meteórica aos 19 anos, ela encarnou a personagem Catherine Earnshaw, da obra homônima de Emily Brontë, com uma interpretação vocal sobrenatural e visceral. Em The Infant Kiss, inspirada pelo filme The Innocents, baseado em A Volta do Parafuso, de Henry James, ela canta sobre desejo reprimido e culpa. Já em Experiment IV, flerta com ficção científica e experimentos militares com o som. Bush tem o dom raro de traduzir ideias complexas e inquietantes em melodias acessíveis, sem diluí-las. Pelo contrário, sua música potencializa a estranheza, o lirismo e o poder simbólico dessas narrativas.

“Just saying it could even make it happen…”
(“Só de dizer isso, pode até fazer acontecer…”)
A frase ecoa como um mantra infantil, sustentado pela esperança cega de que a fé pode alterar o curso do mundo — ou, no mínimo, manter a lembrança viva.

Em Cloudbusting, a junção entre som e sentido é particularmente poderosa. A repetição rítmica sugere um estado mental obsessivo, uma lembrança que retorna sem cessar. A ausência de refrão reforça a ideia de fluxo narrativo, como uma memória em constante reconstrução. A instrumentação crescente, com cordas dramáticas e percussão marcada, evoca tanto o movimento das nuvens quanto o crescendo emocional da história. No videoclipe, dirigido por Julian Doyle com ideias da própria Kate Bush, essa sensibilidade ganha imagem: Donald Sutherland interpreta Wilhelm Reich e Bush, travestida de menino, vive Peter. Juntos, constroem a cloudbuster no alto de uma colina, até a chegada das autoridades. O clipe termina com o disparo da máquina e a mudança no céu — uma ambiguidade poética: a imaginação do filho ainda é capaz de fazer chover.

Kate Bush nunca opta pelo caminho mais fácil. Em vez de canções de amor convencionais, ela mergulha na literatura gótica, na psicanálise, na física marginal, na mitologia e na infância. Cloudbusting é uma ode à imaginação como forma de resistência, à memória como força criativa e ao amor como vínculo indestrutível mesmo diante do esquecimento ou da morte. É, acima de tudo, uma demonstração de como a música pop pode ser um espaço legítimo para a densidade, a delicadeza e a erudição, quando há alguém como Kate Bush para conduzir as nuvens.


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