Com o mega sucesso de The Gilded Age na HBO Max, não apenas os fãs têm se debruçado sobre as histórias reais que inspiram a série, como também houve um despertar renovado para os grandes clássicos literários que retratam a elite novaiorquina do século 19 — entre eles, as obras de Henry James e, especialmente, A Época da Inocência, de Edith Wharton. A atual temporada da série, ao explorar o drama de um possível divórcio dentro da alta sociedade, dialoga diretamente com o romance vencedor do Prêmio Pulitzer, que mergulha nas consequências sociais devastadoras enfrentadas por uma mulher que ousa romper com seu casamento. O momento é oportuno: enquanto o público busca entender as origens da hipocrisia elegante e dos sacrifícios emocionais que moldaram a aristocracia americana, a Netflix prepara uma nova adaptação do clássico — uma história que permanece tão dolorosa quanto atual.
The Age of Innocence (A Idade da Inocência), romance de Edith Wharton, foi publicado em 1920, durante um momento de grande transição cultural nos Estados Unidos — logo após a Primeira Guerra Mundial, quando os valores da velha sociedade americana começavam a ser substituídos por uma modernidade mais pragmática e menos cerimonial. Foi justamente nesse cenário que Wharton, já vivendo na França e afastada da vida novaiorquina que tão bem conhecera, decidiu voltar seu olhar para o passado, recriando com precisão e ironia a aristocracia que moldara sua juventude.

Embora tenha sido inicialmente concebido como uma novela curta — um projeto leve após o monumental The Custom of the Country (1913) —, o livro acabou se transformando em um dos mais densos e sofisticados de sua carreira. A inspiração para a obra veio de sua própria experiência nos salões da elite de Nova York nos anos 1870, mas também da constatação, décadas depois, de que aquela sociedade desaparecera quase sem deixar vestígios visíveis — exceto nas lembranças de seus códigos não ditos, suas hipocrisias e sacrifícios emocionais.
Lançado com sucesso de público e crítica, The Age of Innocence recebeu o Prêmio Pulitzer de Ficção em 1921, tornando Edith Wharton a primeira mulher a vencer essa honraria. O júri reconheceu a obra por sua elegância formal, mas também pela sutileza com que retratava a tensão entre o desejo individual e as convenções sociais — algo que ressoava fortemente numa América em transformação. Ainda assim, alguns críticos contemporâneos chegaram a considerar a obra “antiquada”, por seu apego ao passado, sem perceberem que era, na verdade, uma crítica afiada àquele mesmo passado.
“Na realidade, todos viviam numa espécie de mundo hieroglífico, onde a coisa verdadeira nunca era dita, feita ou sequer pensada — apenas representada por um conjunto de sinais arbitrários.”
— Edith Wharton, A Época da Inocência
O romance se passa na década de 1870, em Nova York, e retrata um mundo à beira da transformação — um mundo que Wharton conhecia intimamente. A chamada Gilded Age, ou Era Dourada, foi um período de crescimento econômico e consolidação de velhas fortunas, mas também de rigidez moral e hipocrisia social. Wharton observa essa sociedade com um olhar ao mesmo tempo nostálgico e crítico, como quem escreve já do outro lado do tempo — ela nasceu em 1862, e cresceu no meio dessa elite que retrata.
A obra traça um minucioso retrato de classe, expondo a cultura, os rituais e as ansiedades de uma aristocracia que se sente ameaçada pela modernidade e pelas mudanças nos costumes. O que está em jogo é a preservação de uma ordem estática, baseada em aparências e códigos não ditos, onde a conveniência importa mais do que a autenticidade

Newland Archer: o protagonista dividido
Newland Archer é apresentado como um homem educado, sensível e progressista dentro dos limites permitidos por sua classe. No início do romance, ele está noivo de May Welland, símbolo máximo da pureza, da previsibilidade e da adequação social. Mas a chegada da prima de May, a Condessa Ellen Olenska, traz à tona em Newland um conflito profundo entre o desejo e o dever.
Ellen representa o oposto de May: uma mulher que desafia as convenções, marcada pelo escândalo de um casamento fracassado com um nobre europeu. É através dela que Newland é forçado a enxergar as amarras invisíveis da sociedade em que vive — e a perceber que, embora se julgue livre, está totalmente preso às expectativas alheias.
A grande ironia do romance é que Newland acredita estar tomando decisões por si mesmo, mas tudo em sua trajetória mostra o quanto ele é, no fundo, um produto do seu tempo. Seu arco é trágico não por causa de uma perda romântica em si, mas por sua incapacidade de romper com o que é socialmente aceitável.
“A verdadeira solidão é viver entre todas essas pessoas gentis que só pedem que a gente finja!”
— Edith Wharton, A Época da Inocência
May Welland: a inocência como artifício
May é, muitas vezes, interpretada como uma personagem passiva ou apagada, mas a leitura contemporânea permite ver sua complexidade. Ela é, na verdade, brilhantemente eficaz em proteger sua posição social e garantir a estabilidade que espera de seu casamento. Em um dos momentos mais emblemáticos do livro, May manipula a situação ao anunciar a gravidez para afastar Ellen — mostrando que, apesar da aparência frágil, ela entende perfeitamente as regras do jogo.
A chamada “inocência” do título pode ser lida de modo duplo: não apenas como a suposta pureza de May ou da sociedade novaiorquina, mas como uma ficção coletiva que mantém todos em seus devidos lugares.

Ellen Olenska: liberdade que ameaça
Ellen é uma figura que pertence e não pertence àquele mundo. Ela carrega a sofisticação europeia, mas também um tipo de liberdade que é vista como perigosa. Sua presença abala as estruturas porque ela se recusa a seguir os roteiros preestabelecidos para uma mulher de sua classe.
É importante destacar que, mesmo Ellen, apesar de sua força e independência, acaba por ceder à lógica social. Ela se retira, deixa Newland para trás, e opta por não destruir completamente a estrutura da família. Assim como Newland, ela faz um sacrifício, mas o dela é mais consciente.
“Eu não posso te amar sem antes te deixar.”
— Edith Wharton, A Época da Inocência
O tempo como personagem
O epílogo do romance, situado 26 anos depois, é de uma melancolia avassaladora. Newland, agora viúvo, está em Paris com seu filho e tem a oportunidade de reencontrar Ellen. Mas, no último momento, decide não subir até o apartamento dela. Esse gesto final é ambíguo: seria um sinal de maturidade, de resignação ou de covardia? Para muitos leitores, é o reconhecimento de que o tempo consolidou as escolhas feitas — e que as possibilidades de um outro destino morreram com a juventude.
Essa passagem final fecha o ciclo com perfeição, reafirmando o tema principal da obra: a renúncia como fundação da identidade social. O que define Newland não é o que ele vive, mas o que ele escolhe não viver.
Estilo e técnica narrativa
Wharton escreve com precisão cirúrgica e ironia refinada. Ela é, ao mesmo tempo, empática com seus personagens e crítica à estrutura em que estão presos. Sua prosa é elegante, rica em detalhes sociais e psicológicos, e marcada por uma construção narrativa em que o subentendido tem tanto peso quanto o que é dito.

A autora utiliza uma narrativa em terceira pessoa que acompanha Newland de perto, mas que muitas vezes o observa com uma certa distância irônica, revelando contradições e fragilidades que ele mesmo não enxerga.
Por que demorou tanto a ser adaptado?
Apesar de seu prestígio literário e de ter se tornado leitura obrigatória nas universidades americanas, The Age of Innocence demorou mais de 70 anos para ganhar uma adaptação cinematográfica de grande porte. Isso se deve, em parte, à sua estrutura narrativa sutil, ao tom introspectivo e à ausência de grandes clímax dramáticos — elementos que sempre desafiaram roteiristas e diretores. É um romance de silêncios, de gestos contidos, de tragédias emocionais privadas — difíceis de traduzir em imagens sem perder sua essência.
Antes mesmo da adaptação consagrada por Martin Scorsese em 1993, The Age of Innocence já havia chegado ao cinema em uma produção da RKO em 1934, dirigida por Philip Moeller. Estrelado por Irene Dunne como Ellen Olenska e John Boles como Newland Archer, o filme foi baseado tanto no romance de Edith Wharton quanto na peça teatral de 1928 escrita por Margaret Ayer Barnes. Com pouco mais de 80 minutos, essa primeira versão apostava em uma estética refinada e atuações elegantes, mas acabou sendo um fracasso de bilheteria e recebeu críticas mornas, sendo considerada rígida e emocionalmente distante. Ainda assim, a performance de Irene Dunne foi elogiada por parte da crítica, e o filme permanece como um curioso registro de como Hollywood, nos anos 1930, tentou representar a sofisticação e repressão emocional da elite novaiorquina do século 19.


E houve também uma adaptação televisiva da BBC em 1977, feita para a TV britânica, com Irene Worth, Robin Ellis e Kathleen Beller — uma produção fiel, mas pouco conhecida fora do Reino Unido. Só com Scorsese, paradoxalmente um diretor mais associado a filmes de máfia e violência urbana, é que o livro ganhou uma tradução cinematográfica à altura de sua delicadeza.
“Tudo pode ser rotulado — mas nem todo mundo pode.”
— Edith Wharton, A Época da Inocência
Scorsese surpreendeu ao trazer para a tela uma recriação deslumbrante da sociedade novaiorquina do século 19, ancorada em performances contidas e uma direção visual precisa. O filme foi indicado a cinco Oscars e consolidou The Age of Innocence como uma das grandes adaptações literárias do cinema moderno. A trilha sonora de Elmer Bernstein merece destaque, recuperando a melodia e dramaticidade da música None But the Lonely Heart, Opus 6, nº 6 de Tchaikovsky, usado no filme de 1934.
Agora, com a entrada da Netflix, The Age of Innocence está prestes a alcançar uma nova geração de espectadores — talvez mais sensível do que nunca ao custo das aparências, à violência da polidez e aos sonhos enterrados sob as expectativas sociais

A dor da conformidade
The Age of Innocence é, acima de tudo, uma meditação sobre o preço da conformidade. Em um mundo onde o que se espera pesa mais do que o que se sente, o amor é sacrificado em nome da ordem. Wharton não condena seus personagens, mas expõe, com precisão dolorosa, como até mesmo os mais bem-intencionados podem ser cúmplices de um sistema que os aprisiona.
É uma obra sobre o que poderia ter sido — e sobre o que não se ousa fazer para alcançar o que se deseja.
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