Em 1875, a publicação de A Escrava Isaura marcou o início de uma trajetória literária e midiática que, 150 anos depois, ainda reverbera na cultura brasileira. Escrita por Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, a obra conquistou leitores no final do século 19 e, mais tarde, telespectadores ao redor do mundo com suas duas adaptações para a televisão. Contudo, se o livro representou um gesto progressista ao denunciar as crueldades da escravidão, sua narrativa e as versões dramatizadas são hoje alvo de críticas importantes — sobretudo por parte de movimentos negros que questionam o protagonismo branco em uma história de cativeiro.

O autor e sua escolha temática
Nascido em Ouro Preto (MG) há 200 anos, em 1825, Bernardo Guimarães era filho de uma família tradicional mineira, branca e de classe média. Estudou Direito em São Paulo, onde conviveu com nomes como José de Alencar e Álvares de Azevedo, e percorreu diferentes cidades do interior brasileiro como jornalista, poeta e juiz.
Segundo relatos de seu neto, o historiador Armelim Guimarães, a ideia para A Escrava Isaura surgiu quando o escritor testemunhou, em 1874, uma cena de açoite entre Queluz (atual Conselheiro Lafaiete) e Ouro Preto. O impacto da cena teria levado Bernardo a escrever um romance de protesto — alinhado, ainda que de modo moderado, com os ideais da campanha abolicionista que ganhava força no Brasil.
A escolha de uma protagonista branca — filha de mãe negra escravizada e pai branco — não foi acidental. Isaura era uma “escrava branca” de pele alva, capaz de se “passar” por mulher livre. Bernardo Guimarães sabia que, em plena vigência da escravidão, o público branco — e as elites — estariam mais propensos a simpatizar com a dor de uma personagem racialmente ambígua, cuja aparência se aproximava do ideal eurocêntrico.
Ao humanizar a escravidão por meio de uma personagem que não exibia as marcas fenotípicas da negritude, o autor conquistou sucesso de vendas, notoriedade literária e até mesmo a admiração do imperador Dom Pedro II, que o visitou em Minas Gerais em 1881. No entanto, esse mesmo recurso dramatúrgico seria posteriormente questionado por reforçar a exclusão de corpos negros na representação da própria história da escravidão.

Adaptações para a TV: romance e censura
A primeira e mais icônica adaptação televisiva de A Escrava Isaura foi exibida pela TV Globo entre outubro de 1976 e fevereiro de 1977, com texto de Gilberto Braga e direção de Herval Rossano. A atriz Lucélia Santos, então com 19 anos, interpretou Isaura — papel inicialmente cogitado para outras atrizes brancas, como Louise Cardoso e Débora Duarte. A escolha de Lucélia, com sua aparência delicada e traços europeus, reforçava a representação da personagem como uma escrava “diferente”, quase alheia à população escravizada que a cercava.
Ambientada no século 19, a novela mostrava Isaura sendo desejada por seu senhor, Leôncio (Rubens de Falco), e sonhando com a liberdade ao lado do idealista Álvaro (Edwin Luisi). O sucesso foi estrondoso: chegou a ser exportada para mais de 80 países, com picos de audiência superiores a 80 pontos no Brasil e fãs ilustres como Fidel Castro. Em Cuba, chegou-se a suspender o racionamento de energia para que todos pudessem assistir à novela. Na Polônia e na Hungria, houve até campanhas públicas para “comprar a alforria” da personagem.
Em 2004, a TV Record fez um remake da novela, também dirigido por Herval Rossano. A nova versão, protagonizada por Bianca Rinaldi, repetiu a fórmula: Isaura continuava sendo branca e de aparência europeia, ainda que identificada como escrava pela sociedade que a oprimia.
Trilha sonora e impacto cultural
Um dos elementos mais marcantes da novela de 1976 foi sua trilha sonora. A canção de abertura, Retirantes, composta por Dorival Caymmi com letra de Jorge Amado, tornou-se símbolo da saga da personagem. Seu refrão — o famoso “lerê-lerê” — foi entoado por crianças e adultos nas ruas, e Lucélia Santos rapidamente virou musa popular e alvo de idolatria internacional.

Durante décadas, A Escrava Isaura foi o principal produto de exportação da teledramaturgia brasileira. Inspirou livros, figurinhas, radionovelas, peças de teatro e estudos acadêmicos, como o de Luciana Barros Góes, que aponta o tom romantizado com que a escravidão é tratada na obra: os negros não se rebelam, apenas aguardam pacientemente sua libertação pelas mãos dos brancos.
O debate contemporâneo: pode Isaura ser negra?
A pergunta que se impõe hoje é incômoda, mas necessária: por que, em uma história sobre escravidão, o protagonismo é reservado a uma mulher branca? Poderia A Escrava Isaura ser recontada com uma atriz negra de pele clara, que, como a personagem, “passa” por branca?
A resposta divide opiniões. Por um lado, há quem veja na possibilidade uma reparação simbólica, capaz de devolver aos corpos negros o protagonismo que lhes foi negado. Por outro, críticos lembram que a própria narrativa foi construída para tornar palatável a dor da escravidão — e que talvez seja mais relevante criar novas histórias, com autorias negras e perspectiva afrocentrada, do que tentar remendar velhos enredos.

A escolha de uma atriz negra clara — que poderia se “camuflar” em um ambiente branco, como Isaura faz no romance — seria, ao mesmo tempo, fiel ao texto original e uma forma de subverter suas implicações raciais. No entanto, tal escolha exigiria uma releitura profunda da obra, com ênfase na resistência negra, nas violências do cativeiro e nas estruturas de poder que perpetuam o racismo.
A Escrava Isaura foi pioneira ao tematizar a escravidão no horário nobre e permanece como marco cultural. Mas, ao centrar sua trama em uma “escrava branca”, reflete os limites de uma sociedade que só reconhece a dor do outro quando esse outro se parece consigo. Recontar essa história hoje exige coragem estética e responsabilidade histórica. E talvez, mais do que uma nova Isaura, o que o Brasil precise seja de uma nova narrativa.
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