Clarice, Sempre Ela

Recentemente fui finalmente ver a peça Simplesmente Eu, Clarice Linspector, com Beth Goulart e me vi perguntando como a indecifrável autora brasileira, que tive que ler na escola como tarefa e que me desafiou a apreciar quando jovem um texto tão profundo, está sendo – finalmente? – popular ao redor do mundo.

Durante décadas, Clarice Lispector ocupou um lugar paradoxal na literatura brasileira: reverenciada por críticos e leitores fiéis, mas ainda considerada “difícil”, “hermética” ou “inclassificável” por muitos. Sua escrita, profundamente introspectiva e existencial, desafiava categorizações fáceis e, por muito tempo, pareceu deslocada mesmo dentro do cânone modernista brasileiro. Hoje, no entanto, Clarice está vivendo um renascimento: novas gerações de leitores, tanto no Brasil quanto no exterior, estão descobrindo a força singular de sua voz — e se reconhecendo nela.

Essa redescoberta é, em parte, fruto do trabalho editorial e crítico das últimas duas décadas, como a edição da Obra Completa pela Rocco, a biografia monumental escrita por Benjamin Moser (Why This World: A Biography of Clarice Lispector, 2009) e traduções cuidadosas de seus romances para o inglês, francês e outras línguas. Mas também é reflexo do espírito do tempo: num mundo cada vez mais saturado de ruído, Clarice parece oferecer um tipo de literatura que acolhe o silêncio, o pensamento, a sensibilidade radical.

A escritora que veio do “fundo do ser”

Clarice nasceu na Ucrânia, em 1920, numa família judia que fugia dos pogroms, e chegou ao Brasil ainda bebê. Cresceu no Nordeste e depois se radicou no Rio de Janeiro. Desde cedo, revelou uma escrita aguda e filosófica. Seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem (1943), escrito aos 23 anos, causou impacto imediato pela linguagem inovadora e pelo mergulho na interioridade da personagem — algo incomum na literatura brasileira da época, ainda marcada pelo regionalismo.

Sua escrita era disruptiva: não contava histórias com começo, meio e fim, mas capturava epifanias, vazios, obsessões e lampejos de consciência. Clarice escreveu romances, contos, crônicas e até livros infantis, sempre com uma linguagem que oscilava entre o poético e o metafísico. Sua frase é como um bisturi: precisa, lírica e dolorosamente reveladora.

Clarice nas artes: cinema, teatro e TV

A força estética e existencial da obra de Clarice transcendeu o papel e tem sido cada vez mais explorada nas artes cênicas e audiovisuais. No teatro, ela é presença constante. A peça com Beth Goulart, se tornou um marco, levando a escritora aos palcos brasileiros e internacionais com um monólogo construído a partir de suas cartas, crônicas e romances. A encenação é uma homenagem sensível e intensa, que capta tanto a dor quanto o brilho de Clarice.

No cinema, sua obra já inspirou adaptações diretas e interpretações livres. A Hora da Estrela (1985), dirigido por Suzana Amaral e estrelado por Marcélia Cartaxo, levou Clarice ao grande público com a história da nordestina Macabéa e ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim. A atuação de Cartaxo ainda é considerada uma das mais icônicas do cinema nacional. Mais recentemente, A Descoberta do Mundo (2021), filme de Taciana Oliveira, mergulha nos bastidores da escritora a partir de suas crônicas.

Na televisão, sua obra aparece de forma mais sutil, mas não menos impactante. Em novelas, minisséries e entrevistas, Clarice é frequentemente citada, sobretudo quando se trata de expressar emoções difíceis com delicadeza. Episódios especiais de programas como Entrelinhas (TV Cultura) e Café Filosófico já abordaram sua obra em profundidade.

Citações por artistas e impacto cultural

Clarice se tornou uma espécie de “musa” literária de músicos, atrizes e artistas plásticos contemporâneos. Lorde, que em 2025 lançou seu novo álbum, Virgin citou a escritora como uma de suas fontes de inspiação para “criar um retrato preciso dela mesma, independentemente de achar que era bonito ou não.” Madonna, em uma entrevista de 2010, disse ter lido Clarice durante uma viagem ao Brasil e a descreveu como “uma escritora profundamente espiritual”. Caetano Veloso já citou Clarice em entrevistas e músicas, e Fernanda Montenegro, uma das maiores atrizes brasileiras, declarou que a literatura de Clarice a ensinou sobre a “voz interna” da personagem.

Uma das manifestações mais marcantes de reconhecimento internacional veio da atriz australiana Cate Blanchett, vencedora de dois Oscars. Em entrevistas recentes, Blanchett mencionou sua paixão por autoras que exploram o interior humano com profundidade, e entre elas citou Clarice Lispector como uma de suas leituras favoritas. A atriz chegou a afirmar que Clarice “escreve como se estivesse abrindo um nervo exposto”, e que gostaria de interpretá-la ou adaptar sua obra para o cinema ou o palco. Essa admiração foi reforçada quando Blanchett participou de leituras públicas de textos de autoras latino-americanas, nas quais incluiu trechos de A Paixão Segundo G.H.

Nas redes sociais, celebridades como Emma Watson e Chloë Grace Moretz já compartilharam trechos de suas obras, ajudando a espalhar sua influência para um público mais jovem e global. Escritoras contemporâneas como Lina Meruane, Valeria Luiselli e Sally Rooney também mencionaram a escritora como uma influência ou referência.

Artistas plásticos e performers brasileiros, como Nuno Ramos, Lenora de Barros e Laura Lima, já criaram obras inspiradas em Clarice ou que dialogam com sua linguagem fragmentada e subjetiva. Em exposições e instalações, ela costuma ser evocada não apenas como autora, mas como símbolo de uma estética do inacabado, do indizível.

A atualidade de Clarice: redes sociais, feminismo e o self fragmentado

Nos últimos anos, a figura de Clarice Lispector ganhou projeção nas redes sociais. Citações atribuídas a ela — muitas vezes erroneamente — viralizaram, revelando uma sede do público por frases densas e provocativas. Essa “memeficação” de Clarice foi ao mesmo tempo um mal-entendido e uma porta de entrada. Muitos leitores que chegaram a ela por frases soltas descobriram, em seguida, uma escritora muito mais profunda do que os memes sugerem.

Clarice também foi recuperada por movimentos feministas contemporâneos como uma autora que escrevia sobre a experiência feminina de maneira radical, muito antes de isso ser moda ou bandeira. Em romances como A Paixão Segundo G.H. (1964) e Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969), ela explora o corpo, o desejo, a maternidade, o medo, a busca por identidade — tudo isso sem didatismo ou panfletarismo, mas com uma potência filosófica e emocional rara.

Hoje, autoras como Rachel Cusk, Jenny Offill, Olga Tokarczuk e até Annie Ernaux dialogam, ainda que indiretamente, com essa tradição clariciana de narrar a subjetividade em estado de crise ou expansão.

Traduções, reconhecimento internacional e o “culto” a Clarice

Durante muito tempo, Clarice era pouco conhecida fora do Brasil. Parte disso se devia à dificuldade de tradução de sua prosa: suas frases, cheias de rupturas sintáticas e jogos filosóficos, perdiam nuances em outras línguas. Mas nos últimos anos, graças a tradutores como Idra Novey, Alison Entrekin e Johnny Lorenz, suas obras ganharam nova vida no inglês e em outros idiomas.

A publicação de The Complete Stories (2015), organizada por Benjamin Moser, marcou um ponto de virada. O livro recebeu elogios entusiasmados de críticos como Edmund White e da New York Times Book Review, que descreveu Clarice como “uma das escritoras mais misteriosas do século 20”. Desde então, ela passou a ser estudada em universidades dos EUA, Canadá, Reino Unido, França e até Japão — não como curiosidade exótica da América Latina, mas como uma escritora essencial.

Clarice passou a ocupar o tipo de lugar que Virginia Woolf, Marguerite Duras ou Sylvia Plath ocupam: autoras cuja literatura atravessa o gênero, o tempo e o espaço. Hoje, ela é tema de clubes de leitura femininos, peças teatrais, teses acadêmicas e adaptações cinematográficas.

Obras fundamentais

  • Perto do Coração Selvagem (1943): romance de estreia, já marcando seu estilo lírico e introspectivo. Influenciado por Joyce e Virginia Woolf.
  • A Hora da Estrela (1977): seu último livro, e o mais conhecido internacionalmente. Conta a história da nordestina Macabéa, mas também fala sobre quem narra e sobre a impotência da linguagem.
  • A Paixão Segundo G.H. (1964): obra de fundo filosófico e existencial, considerada sua mais radical. Uma mulher passa por um colapso espiritual após esmagar uma barata.
  • Laços de Família (1960): coletânea de contos curtos, afiados, que examinam o cotidiano familiar com lente psicológica e surreal.
  • A Legião Estrangeira (1964): reúne contos e crônicas, misturando gêneros e identidades.
  • Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (1969): romance sobre o amor e a busca de linguagem para o sentir.

Uma autora do futuro?

Clarice Lispector ainda parece moderna — ou, mais do que isso, parece escrever para o futuro. Sua obra não oferece respostas fáceis, mas convida o leitor ao risco do pensamento. É literatura que exige presença, silêncio, escuta. Talvez por isso, em tempos de ruído, ela esteja sendo redescoberta: porque em meio ao excesso, Clarice oferece um espaço de respiro e profundidade.

Como escreveu certa vez: “Sou uma pergunta.” E é essa pergunta que continua ecoando — cada vez mais alto — entre os leitores do século 21.


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