Desde sua estreia como Aegon Targaryen adulto, Tom Glynn-Carney foi encarregado de um personagem que, nos livros de George R.R. Martin — especialmente em Fogo & Sangue — aparece descrito por narradores parciais como um tirano fraco, um rei relutante, dissoluto, fútil e, sobretudo, cruel. Aegon II, para muitos leitores, era o rosto da decadência dos Targaryen: alguém sem brilho, sem carisma e com sede de poder apenas porque este lhe foi entregue. Mas o que Glynn-Carney faz na adaptação da HBO é subverter essa leitura sem traí-la. Seu Aegon II continua sendo um monarca imprestável, com decisões brutais e uma presença perigosa — mas é, sobretudo, um ser humano. Frágil, amargurado e desesperado para provar a si mesmo que tem valor. Essa nova abordagem não apenas transforma o personagem: muda, por tabela, o tom da própria narrativa.

Tom Glynn-Carney tem formação teatral e passou por uma seleção rigorosa antes de assumir o trono de ferro. Conhecido por trabalhos marcantes como o príncipe Hal na peça Henry IV com a Royal Shakespeare Company, além de papéis no cinema em Dunkirk (2017) e na minissérie The Last Post, ele chegou a House of the Dragon com bagagem suficiente para lidar com um personagem que exigia contenção e intensidade. É um ator cuja presença raramente explode — mas ferve. Glynn-Carney entende o poder de um silêncio, o peso de um olhar, o impacto de um gesto contido. E é exatamente isso que ele aplica ao Aegon da série.
Ao contrário do retrato plano e funcional dos livros, onde Aegon é um instrumento de guerra usado por outros (em especial Otto Hightower e Alicent), a série de Ryan Condal e George R.R. Martin oferece um espaço maior para a interioridade. O roteiro dá sugestões, mas é o ator quem entrega a densidade. Glynn-Carney revela um Aegon dilacerado entre o desejo de desaparecer e a necessidade de existir. Ele é alguém que cresceu como sombra do irmão Aemond, ignorado pelo pai e moldado por uma mãe que projeta nele um senso de dever que ele não compartilha. Essa angústia aparece desde sua coroação — um momento grandioso em que o personagem está, paradoxalmente, envergonhado.
Vale lembrar (e comparar) que ele segue os passos de outros dois grandes atores que igualmente fizeram essa humanização: Paddy Considine com Viserys na primeira temporada de House of the Dragon, Jack Gleeson como o odiado e trágico Joffrey e até mesmo Iwan Rheon como o sádico Ramsay Bolton em Game of Thrones.


Glynn-Carney transforma esse desconforto físico em linguagem emocional. Seu Aegon nunca está à vontade, seja no trono, seja diante da própria esposa, ou mesmo quando se impõe como rei. Ele não acredita que nasceu para isso, mas também não aceita a ideia de ser irrelevante. Isso o torna volátil. Um rei criança, como Joffrey, mas sem a autoconfiança cruel. Aegon se entende como uma farsa — e é precisamente essa autopercepção que o ator explora com maestria. Ele alterna momentos de arrogância histérica com lapsos de vulnerabilidade comovente, que desmontam a imagem unidimensional do vilão.
A série é particularmente eficaz em sugerir que Aegon tem consciência da sua inadequação. Na segunda temporada, suas reações à morte de Lucerys e ao ataque de Rhaenys demonstram que não se trata de um sádico cego. Há hesitação, choque e até uma espécie de vergonha. Aegon não nega o sangue em suas mãos, mas parece amaldiçoado por ele. Em um universo como o de House of the Dragon, isso o torna quase um personagem shakespeareano: um homem deslocado em meio a tragédias maiores do que ele, incapaz de interromper o ciclo de violência, mas lúcido o bastante para saber que está se destruindo.


Essa profundidade psicológica — ausente no texto de Fogo & Sangue, mas legitimada pela ambiguidade das fontes do livro (mestres, septões, fofoqueiros) — cria uma experiência muito distinta para o espectador. Sabendo que o destino de Aegon II é trágico (algo que o livro não esconde e que a série provavelmente seguirá), o trabalho de Glynn-Carney nos prepara não para a celebração da justiça histórica, mas para o desconforto moral. Quando Aegon cair, não será apenas um tirano derrotado — será um jovem quebrado que se perdeu desde cedo e nunca encontrou redenção.
Nesse sentido, o ator não apenas dá camadas a um personagem outrora plano: ele reestrutura o impacto da narrativa. A guerra civil entre verdes e negros ganha um novo vetor emocional quando percebemos que o homem coroado como usurpador é, no fundo, um instrumento do ressentimento de outros, um filho não amado, um irmão com inveja e medo, e um rei por obrigação, não por vocação. Há um abismo entre o Aegon do livro e o da série — e esse abismo é preenchido por Glynn-Carney com uma performance que privilegia a dúvida, o mal-estar, e, paradoxalmente, a humanidade.
Como apontam alguns críticos britânicos, é uma atuação de “contrainteligência dramática”: ele não interpreta o que o texto exige, mas o que o texto omite. Ao fazer isso, Glynn-Carney reconfigura um personagem condenado à vilania em alguém digno de análise — não de absolvição, mas de compreensão. E essa diferença muda tudo. Ao conhecermos o desfecho — que envolve traição, desonra, e uma morte amarga — sentimos o peso de um destino que não foi apenas cruel, mas evitável. E isso é o que transforma House of the Dragon em tragédia plena.

Assim como Jaime Lannister teve em Nikolaj Coster-Waldau um intérprete que extraiu grandeza de um personagem inicialmente desprezível, Aegon II encontra em Tom Glynn-Carney um ator que transforma ruína em relato. Seu Aegon é menos vilão e mais vítima — não dos outros, mas de si mesmo, de sua criação, de um sistema que não permitia fragilidade em homens, nem liberdade em reis.
No fim, o Aegon da série é uma sombra trêmula — de poder, de herança, de glória. E é por isso que, quando ele ruir, não aplaudiremos. Talvez apenas lamentemos o que poderia ter sido.
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