A Nova Geração Redescobre Barry Lyndon

Era impensável, até pouco tempo atrás, imaginar que uma obra de arte cinematográfica fria, lenta e contemplativa como Barry Lyndon, dirigida por Stanley Kubrick, pudesse se tornar objeto de culto juvenil na era dos cortes frenéticos, do TikTok e do streaming distraído. Mas 50 anos depois de seu lançamento original, o filme retorna às salas de cinema britânicas com status de relíquia sagrada — uma espécie de arte esquecida que, ao ser redescoberta, parece mais ousada e subversiva do que nunca.

Para uma geração que consome imagens em alta velocidade e prefere a vibração emocional intensa dos melodramas contemporâneos, o fascínio por um épico do século 18 repleto de cenas silenciosas à luz de velas, duelos meticulosamente encenados e homens de perucas empunhando mosquetes pode soar como anacronismo. Mas é exatamente aí que reside sua força: Barry Lyndon é um anti-filme dentro da lógica atual — e talvez por isso mesmo, tão magnético para quem procura algo que não se curva às fórmulas do entretenimento digital.

Quando o filme estreou em 1975, foi recebido com frieza. Críticos americanos como Pauline Kael o consideraram um espetáculo belo e tedioso, uma espécie de slideshow de três horas para estudantes de história da arte. O público, acostumado com o impacto sensorial de 2001: A Space Odyssey ou a violência estilizada de A Clockwork Orange, também se decepcionou com aquele filme de andamento cerimonioso, quase estático, que parecia contar a história de um homem que se apaga aos poucos, mesmo em meio ao luxo e às conquistas.

Mas o tempo, como o próprio filme sugere, nivela tudo. A frieza tornou-se elegância. A contenção virou ironia. E a visão fatalista do destino de Redmond Barry — o irlandês que ascende à aristocracia inglesa por meio de sedução, jogo e casamento — revelou-se, na verdade, uma crítica cortante à vaidade masculina, à farsa da nobreza e ao vazio das ambições sociais. A geração Z entendeu isso instintivamente.

Talvez por isso, Barry Lyndon tenha ganhado novos devotos entre jovens cinéfilos e estrelas como Jenna Ortega, que recentemente o listou como um de seus quatro filmes favoritos em entrevista ao Letterboxd. Na mesma plataforma, fãs fazem edições frenéticas com cenas do filme acompanhadas por faixas de 21 Savage, como “A Lot” — cuja melodia melancólica e letra sobre queda e ascensão casam, inesperadamente, com o destino trágico do protagonista. A viralização desses edits só reforça o paradoxo central: o filme que parecia “sem emoção” se revelou um dos mais emocionalmente devastadores da carreira de Kubrick, justamente por sua frieza cirúrgica.

Curiosamente, o projeto só nasceu porque Kubrick não conseguiu realizar seu sonho de dirigir um filme sobre Napoleão Bonaparte. Após o sucesso comercial de A Clockwork Orange, ele acreditava ter liberdade suficiente para investir nessa obsessão pessoal, mas a Warner Bros hesitou — especialmente após o fracasso retumbante de Waterloo, superprodução comandada por Dino De Laurentiis. Diante disso, Kubrick decidiu aproveitar sua pesquisa exaustiva sobre o século XVIII e buscou outra narrativa que pudesse expressar o mesmo universo de guerras, ambição e colapso moral.

Foi assim que encontrou The Luck of Barry Lyndon, romance publicado em 1844 por William Makepeace Thackeray, originalmente em forma de folhetim. Embora menos famoso que Vanity Fair, o livro é uma das sátiras mais ácidas da literatura inglesa sobre o arrivismo masculino. Em estilo de memórias falsas, o protagonista narra sua própria trajetória — da pobreza à riqueza e novamente ao declínio — com uma voz arrogante, farsesca e pouco confiável. A crítica à masculinidade pomposa, à aristocracia corrupta e ao papel da mulher como moeda social está presente a cada página, ainda que disfarçada pelo humor seco e pela ironia.

O livro não causou grande comoção à época, mas foi pioneiro no uso da narrativa em primeira pessoa para expor um narrador mentiroso e vaidoso — um anti-herói muito mais próximo dos escroques contemporâneos do que dos nobres clássicos. Alguns estudiosos inclusive destacam o subtexto sexual da obra: Barry seduz, manipula, se casa por interesse e transforma o desejo em instrumento de poder. O corpo feminino é tratado como trampolim social, e a virilidade masculina como performance de dominação — temas que Kubrick soube preservar, ainda que de maneira fria e distante, no cinema.

Na adaptação, Kubrick eliminou a narração em primeira pessoa e criou um narrador onisciente e irônico (vivido com acidez por Michael Hordern) que antecipa os acontecimentos antes que eles ocorram, gerando uma tensão fúnebre e um senso de destino imutável. A escolha radical de filmar as cenas interiores à luz de velas, com lentes Zeiss desenvolvidas pela NASA, somou-se à estética de pinturas vivas: cada plano parece inspirado por Gainsborough, Reynolds ou Watteau. Os figurinos, a iluminação, os movimentos mínimos de câmera — tudo remete a uma Europa que vive da aparência, mas está prestes a ruir.

Nos bastidores, no entanto, o ambiente era menos nobre. Kubrick exigia dezenas de takes por cena. Ryan O’Neal, galã americano em ascensão, foi escalado mais por exigência comercial do que por escolha artística. Muitos criticaram sua atuação apagada, sem perceber que Kubrick intencionalmente queria um Barry vaidoso, superficial, quase ornamental. Já Marisa Berenson, belíssima como Lady Lyndon, foi praticamente silenciada. Sua personagem mal fala, reforçando a ideia de que a mulher aristocrática não passava de uma estátua viva — decorativa, submissa, aprisionada.

Mesmo com quatro Oscars técnicos, o filme não se destacou nas categorias principais e foi rotulado como mais um exemplo da frieza excessiva de Kubrick. Mas vozes dissonantes começaram a surgir. Martin Scorsese, um de seus primeiros defensores, sempre afirmou que se tratava de um dos filmes mais emocionais que já vira, justamente por retratar com crueza a rigidez ritualizada da sociedade inglesa e o colapso interno de um homem que vive da aparência.

Hoje, essa leitura foi plenamente aceita. Em 2022, o filme ocupou a 12ª posição na lista dos maiores filmes de todos os tempos elaborada por diretores para a revista Sight and Sound — ficando atrás, entre os títulos de Kubrick, apenas de 2001: A Space Odyssey. E sua influência pode ser sentida diretamente na obra de Wes Anderson, com seu uso de cartelas, enquadramentos simétricos, trilhas não convencionais e personagens trágico-cômicos contidos em mundos artificiais. O primeiro duelo de Barry Lyndon poderia facilmente abrir um de seus filmes.

Ainda assim, o maior responsável pela ressurreição do filme pode ser mesmo o rapper britânico-americano 21 Savage, cuja música “A Lot” serviu como trilha para um fan edit viral no TikTok. O contraste entre a letra (“How much money you got? A lot”) e a imagem do declínio melancólico de Barry criou uma espécie de sinfonia do fracasso moderno, que conecta a vaidade do século 18 ao vazio do capitalismo digital contemporâneo.

Nesse sentido, Barry Lyndon triunfa hoje como nunca triunfou no passado. Não por ter mudado, mas porque o mundo finalmente o alcançou. Em tempos de algoritmos, estímulos excessivos e histórias banais disfarçadas de relevância, Kubrick nos oferece uma narrativa lenta, silenciosa e deslumbrante sobre o quanto é fácil chegar ao topo — e o quão inevitável é despencar de lá. Tudo termina, como ele bem nos lembra, com a cartela final em branco e preto: “todos são iguais agora”. É o toque de gênio de um filme que envelheceu mais vivo do que nunca.


Descubra mais sobre

Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.

Deixe um comentário