Como nada é coincidência, fui assistir a ópera Pescadores de Pérolas no dia mundial da amizade. A obra de Georges Bizet é quase uma pérola (sim trocadilho) escondida sob a sombra da obra que é mais associada ao compositor fancês, Carmen. Não há como reparar a injustiça de que a perfeição de uma seja maior do que a outra igualmente bela, mas assim é a vida é Bizet faleceu precocemente há 150 anos sem ter testemunhado o sucesso de ambas.
A montagem no Theatro Municipal do Rio é uma das coisas mais belas do ano, e olha que venho de um O Lago dos Cisnes espetacular. Pescadores de Pérolas é sobre um amor que desafia o tempo, mas ainda mais, como o amor e amizade podem existir e se opor às regras e ciúmes. Nadir e Laila são os amantes apaixonados, mas é o amigo dele, Zurga que se sacrifica pelos dois em uma virada emocionante e trágica da história.

O elenco da montagem é incrível, sendo que vi os merecidamente aplaudidos Carlos Ullán (Nadir), Ludmilla Bauerfeldt (Laila) e Vinicius Atique (Zurga) nos papéis principais. A junção de uma tela com imagens que refletem os perigos de pescar pérolas e imagens da imaginação dos vocalistas e um cenário de beleza extrema nos transporta para o Ceilão (atual Sri Lanka) no século 19. Como mencionei, a ópera conta uma história de renúncia e sacrifício, e da amizade entre dois homens, Nadir e Zurga, ameaçada pelo amor de ambos pela mesma mulher, uma sacerdotisa hindu, Leila, por sua vez dividida entre seu amor por Nadir e seu voto de castidade.
Les Pêcheurs de Perles (Os Pescadores de Pérolas) tem algumas árias e duetos que se tornaram verdadeiros destaques no repertório lírico — mesmo sendo uma obra menos conhecida do grande público. O mais famoso da ópera e mais ou menos seu tema (leimotif) é Au fond du temple saint. Com
melodia é simples, mas profundamente emotiva faz o contraste e a harmonia entre as duas vozes (tenor e barítono) com uma linha vocal que cresce como uma onda suave. Para o soprano, que interpreta Laila, é Comme autrefois dans la nuit sombre que se destaca por combinar lirismo com intensidade emocional. Mas é em um trecho rápido em toda ópera, interpretada por Nadir, que está a verdadeira pérola da obra: Je Crois Entendre Encore.

Sabe quando uma música parece flutuar no ar, como se viesse de um lugar entre a memória e o sonho? Je crois entendre encore é exatamente assim. Uma ária tão delicada, tão encantadora, que parece ter sido feita para ser descoberta aos poucos.
Mas aqui Bizet, que mais tarde iria escrever para tenores La Fleur Que Tu M’Avais Jetée (Carmen), está em outro registro: romântico, sussurrado, quase místico. É o momento onde Nadir, sozinho, revive o instante em que ouviu a voz da mulher que amava — e a memória o atravessa como música flutuando no ar quente.
A melodia de Je crois entendre encore exige quase um milagre vocal: notas agudas em falsete, pianíssimos perfeitos e um legato de seda. É difícil cantar bem — e fácil errar. Talvez por isso seja menos popular que outras árias de tenor, mas entre os conhecedores, ela é um verdadeiro tesouro.
Je crois entendre encore, cachée sous les palmiers,
Sa voix tendre et sonore, comme un chant de ramier…
(Creio ainda ouvir, oculta sob os coqueiros,
Sua voz terna e sonora como o canto de uma rola…)
Essa ária não grita seu brilho — ela sussurra. É íntima, etérea, e por isso mesmo inesquecível quando se escuta da forma certa. Grandes tenores como Alain Vanzo, Nicolai Gedda e Beniamino Gigli lhe deram vida com doçura. Nos tempos modernos, Juan Diego Flórez e Lawrence Brownlee recuperam essa leveza quase impossível, como quem segura uma chama com as mãos.
Je crois entendre encore não é só bonita — ela é hipnótica. Uma lembrança que Nadir tenta agarrar, mas que escapa como brisa, como perfume, como voz ao longe. E talvez por isso seja tão poderosa: porque nos lembra de tudo aquilo que é belo demais para durar.
Se estiver no Rio, a temporada de Os Pescadores de Pérolas vai até o dia 26 de julho. Vale a pena!
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