O mundo real dos sonhos

Para Freud, os sonhos são realizações disfarçadas de desejos reprimidos. Em A Interpretação dos Sonhos, ele afirma que o sonho é a “via régia para o inconsciente”. É no momento em que o ego afrouxa seu controle e o superego adormece que o inconsciente se expressa, muitas vezes por meio de imagens simbólicas. O estado descrito por J. M. Barrie em Peter Pan como os dois minutos antes do sono é o que Freud poderia reconhecer como a fase hipnagógica, um momento em que a censura psíquica ainda não caiu por completo, mas começa a falhar. É nesse instante que imagens intensas, mas não inteiramente formadas, começam a emergir. A Terra do Nunca, “cramada” e compacta, cheia de aventuras interligadas, poderia ser lida como uma condensação onírica (Verdichtung), um dos principais mecanismos do sonho segundo Freud, no qual múltiplos significados e desejos são fundidos em uma única imagem simbólica.

De todas as ilhas deliciosas, a Terra do Nunca é a mais aconchegante e compacta, não é grande e espalhada, sabe, com distâncias tediosas entre uma aventura e outra, mas bem apertadinha. Quando você brinca nela durante o dia com as cadeiras e a toalha da mesa, ela não é nada assustadora, mas nos dois minutos antes de você dormir, ela se torna quase real. É por isso que existem luzes noturnas.
― J.M. Barrie, Peter Pan

A fala de Barrie de que a Terra do Nunca “se torna muito quase real” sugere essa zona liminar entre o consciente e o inconsciente. A realidade psíquica começa a ter tanto peso quanto a realidade objetiva — e para Freud, isso é exatamente o que acontece no mundo dos sonhos, onde o simbólico é mais “real” do que o real.

A função das night-lights: simbolismo e defesa psíquica

As luzinhas noturnas, mencionadas por Barrie no fim do trecho, cumprem aqui uma função ambivalente. São objetos reais, mas atuam como barreiras contra a invasão do inconsciente, como se tivessem o poder mágico de impedir que a Terra do Nunca se torne real demais. Do ponto de vista freudiano, poderiam ser lidas como formas de resistência ou repressão: dispositivos simbólicos de contenção da fantasia, da sexualidade latente, do medo de perda de controle, da morte ou da separação.

Podemos também estender a análise: a presença das night-lights como proteção está de acordo com a ideia de que o sono e o sonho podem ser angustiantes, especialmente para a criança, pois envolvem a separação do cuidador, o abandono do controle consciente e a imersão em um mundo simbólico. As luzes são um consolo visual, mas também um amuleto contra a força do que se desvela nos instantes em que o superego cochila.

Jung: arquétipos e a Terra do Nunca como inconsciente coletivo

Ao ampliarmos a análise para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung, a Terra do Nunca se torna ainda mais rica em simbolismo. Para Jung, os sonhos são expressões não apenas do inconsciente pessoal, mas do inconsciente coletivo, onde habitam os arquétipos universais. A Terra do Nunca é, por excelência, um espaço arquetípico — o reino da infância eterna, da sombra, da anima e animus, da aventura, do herói e do trickster.

O próprio Peter Pan é o arquétipo do Puer Aeternus, o “menino eterno” que se recusa a crescer, figura analisada por Marie-Louise von Franz (colaboradora de Jung). O acesso a esse espaço não é racional: ele ocorre nos momentos em que a mente racional está prestes a se desligar, e os símbolos emergem sem censura. A Terra do Nunca aparece nos instantes em que estamos mais vulneráveis às imagens do inconsciente coletivo. Ela não pertence ao mundo desperto, mas à imaginação arquetípica — por isso só se torna “muito quase real” nos minutos antes de dormir, quando o véu entre os mundos se afina.

A criança como sonhador: Winnicott e o espaço transicional

Donald Winnicott, outro teórico fundamental da psique infantil, contribui com uma leitura mais voltada à relação da criança com o mundo simbólico. Para ele, existe um “espaço transicional” entre o interno e o externo — o espaço do brincar, da imaginação, do sonho. A Terra do Nunca é, nesse contexto, o espaço transicional por excelência: criado pela criança, mas compartilhado por outras, real na experiência subjetiva, mas não empírico.

O momento antes do sono é aquele em que o objeto transicional — como o cobertor, o urso de pelúcia ou as night-lights — ganha mais importância. Esses objetos facilitam a travessia psíquica entre o real e o imaginado. Barrie parece captar isso intuitivamente. O jogo com cadeiras e toalhas durante o dia é simbólico e controlado, mas no limiar do sono, o simbólico assume poder quase místico. É quando o brincar se transforma em sonho.

A Terra do Nunca está sempre mais ou menos na direção da estrela da manhã. Ela varia muito de menino para menino. Quando você está dormindo, ela desenha perto da sua cama e, assim que você acorda, escapa silenciosamente pela janela.”

― J.M. Barrie, Peter Pan

Correntes contemporâneas: neurociência e estados hipnagógicos

A neurociência contemporânea reconhece a existência de estados liminares entre vigília e sono — os chamados estados hipnagógicos e hipnopômpicos — como momentos férteis para alucinações visuais, sensações de deslocamento e criatividade intensa. Esses estados são comuns em crianças, especialmente em fases de imaginação vívida. A descrição de Barrie se alinha com esse conhecimento moderno: há uma compressão do espaço-tempo, uma alteração da percepção, uma vivência intensa de imagens mentais.

Estudos mostram que nesses momentos, o cérebro ainda apresenta ondas alfa, mas já começa a gerar ondas teta — características do sono leve e da atividade onírica. É nesse cruzamento que o cérebro permite “ver” a Terra do Nunca, não como abstração, mas como experiência sensorial real. A “realidade subjetiva” ultrapassa as fronteiras do que seria apenas fantasia.

A Terra do Nunca como sonho compartilhado

O trecho de Peter and Wendy pode ser lido como uma alegoria da própria experiência de sonhar — uma experiência pessoal e universal, carregada de desejo, de símbolos, de medos e de projeções. Ao dizer que a Terra do Nunca se torna real antes de dormir, Barrie parece sugerir que os sonhos mais verdadeiros não ocorrem apenas à noite, mas nas margens da consciência. E que os adultos só não veem a Terra do Nunca porque apagaram as luzes noturnas da infância.

Freud diria que a criança realiza desejos recalcados através dos sonhos. Jung veria a Terra do Nunca como um mapa do inconsciente coletivo. Winnicott diria que ela é o lugar do brincar, onde o self verdadeiro emerge. A neurociência vê ali um estado de transição, rico em imaginação e plasticidade cerebral. J. M. Barrie, com sua prosa delicada e precisa, parece intuir todas essas teorias ao dar forma ao invisível: a alma de uma criança no momento exato em que está prestes a sonhar.


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