Ridley Scott: A Gênese do Horror e da Tecnologia

Nunca fui especialmente fã de sci fi ou de terror, mas sou parte do fã clube de Sir Ridley Scott. Cresci com seus filmes, aprendi sobre cinema com eles e posso passar muito tempo fazendo elogios. Ao assistir de antemão os primeiros seis episódios de Alien:Earth, a série da FX que no Brasil estará na plataforma da Disney, me peguei mais uma vez eletrizada pela consistente visão de Scott sobre tudo: Arte, Sociedade, e Vida. Ao longo de sua variada filmografia, o diretor consistentemente manteve seus questionamentos presentes, em qualquer cenário: presente, futuro, na Terra ou no Universo.

Alien:Earth não é de sua autoria, é produzido por ele, assim como foi a injustamente cancelada Raised by Wolves, que voltou ao meu coração tortuosamente via a nova série que estreia semana que vem. E podem anotar: está incrível (lembrem que meu elogio tem peso duplo porque não aguento terror e especialmente quando está combinado com sci fi e devorei os espisódios querendo mais).

Ridley Scott não é um cineasta que prevê o futuro — ele o entende. Há mais de quatro décadas, Scott constrói mundos em que o embate entre humanidade e tecnologia, o colapso ambiental, o domínio de grandes corporações e a falência emocional dos humanos são temas centrais. Filmes como Alien (1979) e Blade Runner (1982) já mapeavam um cenário sombrio e cínico que, agora, parece ter se concretizado. Seu legado é tão premonitório que a própria ficção-científica começa a parecer mais documental do que especulativa. Em 2025, com o lançamento da série Alien: Earth, mais uma peça desse mosaico distópico se encaixa — e, não por acaso, ecoa também os dilemas de sua série Raised by Wolves, cancelada prematuramente, mas fundamental para entender sua visão.

Humanos falhos, androides conscientes

Uma das provocações mais inquietantes que Scott propõe — com consistência — é que talvez os humanos não sejam a forma mais evoluída de consciência. Blade Runner é a expressão mais refinada dessa tese: replicantes, supostamente “menos que humanos”, demonstram mais compaixão, dor e desejo de viver do que os próprios humanos que os caçam. A questão central — o que nos torna humanos? — é respondida de forma incômoda: empatia. E, ironicamente, ela é mais presente nas criaturas artificiais.

Essa mesma ideia foi retomada em Raised by Wolves (2020–2022), onde androides programados para proteger e amar crianças humanas se tornam mais cuidadosos, sensíveis e consistentes do que os próprios humanos em guerra. Mãe (Mother), a androide protagonista, é ao mesmo tempo uma arma de destruição em massa e uma figura materna profundamente emocional — capaz de ternura, raiva, sacrifício e dor. Sua empatia não é “verdadeira” no sentido biológico — ela é construída. Mas talvez justamente por isso seja mais pura: seu algoritmo de cuidado não falha por vaidade, por ganância ou por instinto de dominação. Os humanos, por outro lado, continuam escravizados por esses impulsos destrutivos.

Em Alien: Earth, essa equação volta à cena, agora em um mundo onde a própria humanidade está à beira da extinção, e a tecnologia outrora criada para servir se torna a única esperança de sobrevivência — ou a última ameaça. O paralelo entre androides que preservam valores e humanos que os corrompem não é apenas um artifício narrativo: é um espelho de como estamos delegando cada vez mais nossa inteligência emocional e ética às máquinas, enquanto nós mesmos nos tornamos algoritmos quebrados.

“O maior terror não está no espaço — está dentro de nós.”
— Ridley Scott, sobre Alien

O planeta morto e o domínio das corporações

Desde Alien, Ridley Scott constrói futuros em que a Terra é uma lembrança ou um fardo. O planeta, tal como o conhecemos, é destruído ou irrelevante. Em Blade Runner, quase ninguém vive mais na Terra. Em Raised by Wolves, ela é reduzida a cinzas após uma guerra religiosa e ideológica entre ateus e fanáticos. Em Alien: Earth, ela volta a ser o campo de batalha — mas não há romantismo no retorno: o planeta está dominado por megacorporações que manipulam biotecnologia e controle da vida como mercadoria.

A Weyland-Yutani, em Alien, já era a corporificação da ganância absoluta: uma empresa disposta a sacrificar toda a tripulação da nave Nostromo para capturar o organismo alienígena perfeito como arma biológica. Em Alien: Earth, esse arquétipo se atualiza com personagens como Boy Cavalier, jovem bilionário que representa o novo rosto do capitalismo distópico — não mais CEOs engravatados, mas gênios narcisistas que manipulam o destino humano como uma startup. A tecnologia, aqui, não é a vilã: o vilão é o humano que a usa sem ética.

O eco contemporâneo é inevitável: vivemos sob o domínio de empresas de tecnologia que controlam dados, afeto, identidade e política. Ridley Scott, décadas atrás, já havia nos alertado que, no futuro, o poder estaria menos com governos e mais com corporações capazes de criar ou destruir mundos com um código. E estamos lá.

Os temas fora da ficção científica: poder, memória, legado

Mesmo fora do sci-fi, Scott continua discutindo os mesmos temas. Em Gladiator (2000), o imperador romano representa a decadência moral de um sistema onde o poder absoluto corrompe absolutamente. A arena é o espetáculo da morte para distrair uma sociedade em ruínas. Em House of Gucci (2021), a trama gira em torno de ambição, manipulação e o colapso de uma dinastia — temas que ecoam os dramas corporativos de Blade Runner e Alien. Em Napoleon (2023), o foco é a vaidade como motor da destruição.

Esses filmes sugerem que, para Scott, os gênios — sejam imperadores, estilistas ou inventores — são também os agentes do colapso. A inteligência isolada da empatia não salva: ela mata. Genialidade é perigosa quando divorciada da fragilidade e da compaixão humanas.

O “gênio” não é herói. É o catalisador do colapso. Seja um programador que cria androides, um imperador que sonha com imortalidade ou um CEO que promete reinventar o DNA humano, Scott pinta esses homens como figuras trágicas: inteligentes o suficiente para construir um novo mundo, mas emocionalmente despreparados para habitá-lo.

“A empatia é o único traço que diferencia um humano de uma máquina. Mas nem todos os humanos a têm.”
— Scott, em entrevista sobre Blade Runner

“Alien: Earth” e a Terra do Nunca das máquinas

Em Alien: Earth, Ridley Scott retorna ao universo de Alien com uma guinada narrativa ousada: pela primeira vez desde os filmes originais, a ameaça xenomorfa se instala na Terra — um planeta devastado não por criaturas espaciais, mas por nós mesmos. A série, criada por Noah Hawley, se passa décadas após as incursões originais e funciona tanto como reinvenção quanto como continuidade temática.

A personagem central, Wendy, é uma jovem ligada aos experimentos da Prodigy, empresa bilionária que promete alterar o futuro da humanidade por meio de engenharia genética e biotecnologia. Mas Wendy, que deveria ser apenas um elo passivo no projeto, emerge como a figura mais humana da série — não por sua biologia, mas por sua capacidade de sentir e questionar. Ela é o elo entre a monstruosidade xenomorfa e a crueldade racional dos humanos. O conflito deixa de ser “alien vs. humano” e passa a ser “consciência vs. sistema”.

Scott e Hawley inserem aqui uma camada alegórica poderosa: Wendy é uma espécie de Wendy Darling, a menina do conto Peter Pan, presa na Terra do Nunca de uma infância manipulada por adultos. Mas neste caso, o “Peter” é Boy Cavalier — um bilionário jovem, narcisista e perverso, que promete liberdade e reinvenção, mas exerce controle absoluto sobre todos ao seu redor. Ele é o novo “gênio trágico” do universo Scottiano: mais sedutor, mais cruel, mais contemporâneo. É como se Tyrell, Zuckerberg, Musk e uma criança mimada tivessem fundido seus DNAs em um só corpo.

A conexão com Raised by Wolves fica clara: assim como Mother era programada para proteger e acaba gerando destruição por amor, Wendy representa a esperança de uma nova geração que carrega a violência do passado no próprio corpo. O dilema da empatia programada reaparece: Wendy é capaz de sentir mais do que aqueles que a criaram — mas será que isso basta?

A ameaça alienígena, nesse contexto, volta a ser mais simbólica do que literal. Os xenomorfos são fruto do delírio corporativo, da engenharia fora de controle e da vaidade científica. Mas o verdadeiro terror é que ninguém parece mais saber o que é “vida”. Wendy é vista como código. O planeta é um ativo. O medo, uma ferramenta de persuasão. A série desconstrói o próprio gênero sci-fi ao mostrar que o horror talvez não venha do espaço — mas do desejo humano de controle total.

Um espelho sombrio

A obra de Ridley Scott, vista em conjunto, forma um grande mural do século 21. Ele não é um autor esperançoso. Suas histórias não prometem salvação, mas exigem lucidez. Se androides podem amar mais do que nós, não é porque são mágicos — é porque fomos programados para falhar. Mas, ao tornar isso visível, Scott oferece algo precioso: a chance de reprogramar.

Em Alien: Earth, como em Raised by Wolves e Blade Runner, ainda há resistência, ainda há questionamento. A pergunta permanece: vale a pena ser humano? E a resposta, talvez, esteja menos em nossos genes e mais em nossas escolhas. Ridley Scott já sabia disso há 40 anos. Nós é que ainda estamos tentando entender.


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