Durante décadas, os talk shows ocuparam um lugar central na cultura popular dos Estados Unidos. Emissoras moldaram suas noites ao redor dessas produções, que misturavam comédia, entrevistas, comentários sociais e, não raro, política. Era nos sofás desses programas que estrelas promoviam seus filmes, músicos lançavam novos trabalhos, e o público descobria os próximos fenômenos da cultura pop. Ícones como Johnny Carson, David Letterman, Jay Leno, Oprah Winfrey e, mais recentemente, figuras como Jon Stewart, Stephen Colbert e Jimmy Fallon consolidaram o gênero como um dos pilares do entretenimento norte-americano. No Brasil, Marilia Gabriela e Jô Soares eram referências,
No entanto, o que antes era sinônimo de relevância, hoje parece atravessar uma crise existencial. Os talk shows vêm perdendo espaço, audiência, impacto — e agora, cada vez mais, liberdade editorial. A recente decisão do grupo CBS/Paramount de cancelar The Late Show with Stephen Colbert, sob pressão política e como parte de uma negociação maior envolvendo o magnata Donald Trump, acendeu o alerta: estaríamos testemunhando o fim de uma era?

A origem do formato
Os talk shows têm raízes nos primeiros anos da televisão. No final dos anos 1940 e começo dos 1950, nomes como Joe Franklin e Steve Allen começaram a experimentar com o formato que mesclava entrevistas, música e comentários informais. Allen, inclusive, é muitas vezes creditado como o criador do The Tonight Show, que estreou em 1954 e se tornou o modelo de referência para todos os demais.
Mas foi Johnny Carson quem deu ao talk show seu rosto definitivo. De 1962 a 1992, The Tonight Show Starring Johnny Carson não apenas dominou as noites americanas, como estabeleceu o tom, o ritmo e o papel cultural do talk show noturno. Carson era visto como um termômetro da América: irônico, elegante, às vezes mordaz, mas sempre acessível. Seus entrevistados iam de astros de Hollywood a presidentes dos EUA — e seu sofá era quase uma consagração pública.
Auge e fragmentação
Nos anos 1990 e 2000, o gênero atingiu uma espécie de fragmentação de ouro. Jay Leno e David Letterman duelavam pelas noites; Conan O’Brien cativava uma geração mais jovem; e Ellen DeGeneres e Oprah Winfrey mostravam como o formato podia se moldar ao daytime e ao entretenimento familiar ou emocional.
Ao mesmo tempo, os talk shows começaram a se dividir em subgêneros. O humor político ganhou espaço com The Daily Show de Jon Stewart, que transformou notícias em sátira crítica e deu origem a uma geração inteira de comentaristas híbridos, como Stephen Colbert, John Oliver e Trevor Noah.
Essa guerra por relevância e audiência, com cada apresentador tentando criar o momento mais viral da noite, tornou-se uma pressão permanente nos bastidores do gênero. Convidados se repetem entre programas concorrentes, geralmente contando as mesmas histórias, ensaiadas e inofensivas — como parte de uma engrenagem promocional rígida, muitas vezes gerida pelos próprios estúdios e agentes. Com isso, o frescor das entrevistas deu lugar a uma previsibilidade entediante.
A própria autonomia criativa dos apresentadores tem sido cada vez mais cerceada por diretrizes de “humor correto”, evitando polêmicas ou comentários potencialmente ofensivos. Isso, que em parte reflete uma mudança de sensibilidade social legítima, também limita a acidez que um dia foi marca registrada de grandes nomes como Letterman ou mesmo Colbert em seus tempos mais irreverentes.

Essa tensão entre a liberdade artística e a patrulha ideológica se reflete também na escassez de mulheres no gênero. Na terceira temporada da série Hacks, esse ponto é explorado com brilhante ironia: a comediante Deborah Vance, interpretada por Jean Smart, perde seu talk show diante da guerra por audiência, dominada por homens, e da percepção de que o que ela tem a dizer “não se encaixa” no formato atual. A série expõe com precisão como poucas mulheres conseguiram comandar talk shows em rede nacional — e, quando o fizeram, enfrentaram limitações impostas por expectativas de comportamento, humor e estilo.
O começo do declínio
Mas, como em todo ciclo cultural, o auge deu lugar a uma erosão lenta. O primeiro golpe estrutural veio com a mudança nos hábitos de consumo de mídia. Com a ascensão da internet, das redes sociais e, sobretudo, do YouTube, o modelo de talk show tradicional começou a parecer anacrônico.
Os melhores momentos passaram a ser consumidos em clipes avulsos — os famosos segments recortados e viralizados no dia seguinte — e não mais como um programa completo. A audiência linear encolheu. Os próprios artistas passaram a usar suas redes para fazer anúncios diretamente, sem depender dos apresentadores como intermediários.
A situação se agravou com a pandemia de COVID-19. Produções foram suspensas ou adaptadas às pressas para formatos caseiros, perdendo ainda mais da aura e do timing que o gênero exigia. Mesmo após a retomada dos estúdios, os números não voltaram ao patamar anterior.
A guinada política e o caso Colbert
Nos últimos anos, o talk show — especialmente na versão noturna — passou a ser um campo de batalha política. Em especial, os apresentadores que se posicionaram abertamente contra Donald Trump viram seu conteúdo ser cada vez mais associado à militância progressista. Stephen Colbert se destacou nesse campo, transformando The Late Show em uma trincheira satírica contra o trumpismo. Seu sucesso de audiência após 2016 foi notável, mas também atraiu ataques e boicotes.
Em 2025, em meio à tentativa de reestruturação do conglomerado CBS/Paramount, Donald Trump pressionou diretamente executivos do grupo para eliminar vozes críticas. Stephen Colbert foi o primeiro alvo. O cancelamento de The Late Show, embora oficialmente atribuído a cortes financeiros, foi visto como resultado direto da interferência política.
No dia seguinte ao anúncio, todos os principais apresentadores noturnos — Jimmy Fallon, Jimmy Kimmel, Seth Meyers, John Oliver e até antigos rivais de Colbert — compareceram à gravação de seu programa e se sentaram na plateia em gesto público de apoio. Foi um momento simbólico de união, mas também um alerta coletivo: no fundo, todos sabem que correm risco semelhante.
A bandeira de defesa não era apenas por lealdade a Colbert, mas à própria ideia de que, nesses programas, ainda seja possível fazer crítica social e cobrar responsabilidade de políticos e da mídia. Mas o impasse persiste: mesmo com esse ideal, o formato sofre desgaste. A crescente onda conservadora quer calar vozes dissonantes, enquanto o público jovem, desconectado da linguagem do talk show tradicional, busca humor, comentário e crítica em novos espaços — mais rápidos, mais informais, mais fragmentados.
Um formato em extinção?
A pergunta que paira sobre tudo isso é: os talk shows estão sendo derrotados por forças externas — como política e finanças — ou seriam apenas vítimas de sua própria obsolescência?
A resposta pode estar em uma combinação de fatores. Com o domínio das redes sociais, o modelo de “revelação exclusiva” perdeu valor. As celebridades preferem controlar sua narrativa em seus próprios perfis. Os estúdios não precisam mais tanto dos talk shows para promover filmes — trailers são lançados no Instagram ou no TikTok, entrevistas exclusivas vão para canais de influenciadores ou sites especializados.
O público, por sua vez, não tem mais a mesma disposição para acompanhar entrevistas longas, piadas repetidas ou quadros previsíveis. A geração Z consome conteúdo em pílulas, fragmentado, acelerado, hiperconectado. O talk show, com sua lógica dos anos 80 e 90, parece lento, domesticado e até artificial diante da cacofonia digital de hoje.

O fim de uma era?
É possível que o talk show, como o conhecemos, tenha chegado ao fim. Não por falta de talento — muitos apresentadores ainda têm brilho, timing e relevância — mas por não mais corresponder ao espírito do tempo. Como o jornal impresso, como o CD, como o shopping center, o talk show pode estar se tornando mais um artefato de uma era que se despede.
Talvez o futuro do gênero esteja em se reinventar em outras plataformas, com outros formatos, menos dependentes da grade da TV e mais sintonizados com os fluxos digitais. Ou talvez o talk show, enquanto formato tradicional, simplesmente se apague — tendo cumprido seu papel como espelho, filtro e cronista da cultura americana por quase um século.
O que parece certo, ao menos por agora, é que o sofá noturno perdeu seu protagonismo. E talvez o riso que antes unia o país diante de um mesmo apresentador esteja hoje pulverizado em múltiplas telas, vozes e bolhas — sem que ninguém, ainda, tenha conseguido ocupar aquele centro simbólico de onde se ditava o tom da conversa nacional.
O que o futuro sinaliza?
A sobrevivência dos talk shows parece depender de duas batalhas simultâneas: resistir à censura política e encontrar relevância num ecossistema digital em constante mutação. Será possível manter a independência crítica sem perder audiência? Há espaço para ousadia sem ser engolido por patrulhas ideológicas ou cancelamentos corporativos?
Por enquanto, a cena dos talk shows parece travada entre dois mundos: o velho, onde o sofá e o monólogo definiam o tom da cultura; e o novo, onde tudo se pulveriza em vídeos de 30 segundos e narrativas individuais. Talvez a pergunta mais urgente não seja se os talk shows vão acabar — mas se ainda há algo que só eles podem oferecer.
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