Há algo profundamente fascinante em perceber como, mesmo após mais de meio século, Jesus Christ Superstar continua provocando, emocionando e renovando seu impacto. Estamos falando de um musical que, ao completar 55 anos segue sendo revisitado por novas gerações, desafiando convenções tanto estéticas quanto religiosas. E é justamente isso que torna a atual montagem com Cynthia Erivo como Jesus uma das reinterpretações mais radicais e, ao mesmo tempo, coerentes com o espírito original da obra.

O musical surgiu de um impulso ousado: em 1970, Andrew Lloyd Webber e Tim Rice criaram um álbum-conceito inspirado nos últimos sete dias da vida de Jesus. Mas o centro narrativo não era exatamente o Cristo glorificado e onipotente, e sim o homem — aquele que duvida, sofre, entra em crise, e que é traído por um amigo. Judas, no caso, é o grande eixo da trama. Isso, por si só, já causaria escândalo. Mas Jesus Christ Superstar nasceu para ser escândalo — no melhor sentido.
Como lembrei em 2020 na minha coluna em CLAUDIA e aqui em Miscelana no aniversário de 50 anos do filme, em 2023, LLoyd Weber e Rice, amigos de longa data, se inspiraram na frase “Será que Judas Iscariotes estava com Deus ao seu lado?” da canção With God on Our Side, de Bob Dylan como ponto de partida para criar uma ópera-rock que contava a Paixão de Cristo com guitarras distorcidas, bateria pulsante e letras que pareciam confissões íntimas, existenciais, desesperadas.
O álbum foi lançado sem nenhuma peça encenada, porque ninguém acreditava que isso pudesse realmente ir ao palco. Mas o sucesso foi tão grande (foi o disco mais vendido nos Estados Unidos em 1971) que o musical estreou na Broadway no mesmo ano, com montagens subsequentes no West End de Londres e, logo depois, ao redor do mundo. Sim, era o ano que o mundo também aprecisava a ópera-rock Tommy, da banda The Who.
Desde então, Superstar nunca deixou de ser encenado. Já foram mais de quarenta países, incontáveis montagens amadoras e profissionais, pelo menos duas versões filmadas — a clássica de 1973, dirigida por Norman Jewison e estrelada por Ted Neeley e Carl Anderson, ainda imbatíveis nos papéis principais, e a versão para a TV/PBS de 2000. Mais recentemente, em 2018, a produção ao vivo da NBC, com John Legend como Jesus e Sara Bareilles como Maria Madalena, trouxe a obra para o streaming e mostrou que ela ainda fala diretamente à nossa era. Mas o que a nova montagem com Cynthia Erivo faz é mais do que uma atualização. É uma reinterpretação total.

Colocar uma mulher, negra e gay, no papel de Jesus, não é apenas uma inversão simbólica. É uma resposta direta ao tipo de mundo que Superstar sempre tentou dialogar: um mundo em convulsão, onde o poder oprime, a fé vacila, e as figuras de liderança muitas vezes são marginalizadas, traídas ou reduzidas. Cynthia, que já havia interpretado Judas numa leitura-concerto em 2018 de outro musical, agora assume o papel central numa produção que não apenas aplaude sua performance vocal (e como não aplaudir, com a entrega visceral que ela faz de “Gethsemane”?) como a consagra como uma das grandes intérpretes teatrais do nosso tempo.
E aqui vale uma pausa: “Gethsemane (I Only Want to Say)” é, sem exagero, um dos números mais difíceis de todo o repertório de musicais. Exige uma extensão vocal absurda, alcançando notas altíssimas próximas do A5, além de controle respiratório, interpretação emocional e, acima de tudo, fôlego psicológico. Não à toa, muitos cantores consagrados evitam o papel de Jesus. Ele é emocionalmente brutal. A cada vez que canta “I have to know, I have to know, my Lord…”, o ator ou atriz precisa estar inteiro — e talvez por isso mesmo Cynthia tenha sido tão celebrada. Ela não canta. Ela se entrega. E faz do momento de dúvida de Jesus uma catarse coletiva. O próprio Ted Neeley – que estava na platéia – a enalteceu por uma interpretação inesquecível.
Sabendo que o papel principal na verdade é de Judas Iscariotes, é preciso ressaltar o brilhantismo técnico e entrega emocional de Adam Lambert, um dos talentos musicais mais incríveis das últimas décadas, tanto que foi o eleito para cantar com Queen e encarar todas as comparações com Freddie Mercury. É para quem pode, né?

Mas voltando à origem: Webber e Rice foram criticados por quase todos os setores religiosos no início. Grupos cristãos acusavam o musical de heresia — onde já se viu um Jesus que sofre, que vacila, que não é divino o tempo todo? Grupos judeus protestavam contra as representações estereotipadas dos sacerdotes. E mesmo o público mais progressista não sabia se estava diante de uma crítica, uma homenagem ou um espetáculo cínico. Mas o tempo — como sempre — deu razão à arte. E hoje, não apenas o Vaticano já tocou a trilha de Jesus Christ Superstar em celebrações culturais, como o musical é reconhecido como um dos pilares da transição entre o teatro musical clássico e o musical moderno.
Boa parte disso está nas letras. Judas pergunta a Jesus por que ele se deixou transformar em mito. Maria canta que não sabe como amar aquele homem que é adorado como Deus. Pilatos se vê impotente diante da turba. E Jesus… Jesus é um homem no limite da compreensão humana. Nenhuma outra obra musical colocou as contradições do cristianismo de forma tão humana — e tão dolorosa. É sobre fé, sim. Mas é sobre a dúvida. Sobre o amor que fere. Sobre a revolta. Sobre a solidão dos líderes.
E por isso, ele se mantém relevante. A cada crise política, a cada momento em que figuras públicas são elevadas à santidade ou destruídas pela multidão, Superstar ecoa. Seja nos protestos dos anos 70, na crise de fé pós-pandemia, ou na leitura feminista e racial de 2025, ele está ali — pulsando.

Hoje, estima-se que dezenas de montagens de Jesus Christ Superstar sejam encenadas anualmente, seja em escolas, teatros independentes, ou grandes casas de espetáculo. Cada uma com suas próprias leituras, elencos diversos, formas de vestir a dor e a glória de Jesus. Mas em todas, há algo que permanece: o desafio. Cantar essas músicas — especialmente os solos de Jesus e Judas — não é para qualquer um. É para quem está disposto a abrir a garganta e o peito. Como Ted Neeley e Carl Anderson fizeram em 1973, como Brandon Victor Dixon fez em 2018, como Cynthia Erivo e Adam Lambert estão fazendo agora.
Não é por acaso que, mesmo com mais de cinquenta anos de história — para ser exato, 55 desde o lançamento do álbum — Jesus Christ Superstar ainda gera debates, aplausos, rejeições e lágrimas. Poucas obras nascem com essa capacidade de renovação. E talvez seja por isso que hoje, quando vejo Cynthia Erivo gritar “Why should I die?”, não vejo apenas uma releitura moderna. Vejo o musical inteiro se renovando. Mais uma vez. Porque ele nasceu para isso: para provocar. Para desconstruir. Para arder.
E ainda arde.
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