Há filmes que não apenas estreiam — eles se instalam no imaginário coletivo como se sempre tivessem estado lá, prontos para moldar a forma como enxergamos um universo inteiro. Cisne Negro, lançado em 2010, é um desses raros casos. Um híbrido de drama psicológico, terror corporal e estudo sobre perfeccionismo, a obra de Darren Aronofsky mudou a maneira como o cinema retrata o ballet, revelando que sob a superfície etérea da dança há um território fértil para a obsessão, a paranoia e a autodestruição.
Neste mês, a Searchlight Pictures coloca esse clássico de volta às telas — e não de qualquer jeito. Em parceria com a Imax, o estúdio lança Black Swan 15th Anniversary Exclusive: Remastered for Imax, exibido em mais de 200 salas nos dias 21 e 24 de agosto. É a primeira vez que o filme ganha o tratamento IMAX, prometendo mostrar “todo o escopo cinematográfico e profundidade” da obra, com uma nova restauração e até um pôster comemorativo para os primeiros compradores. É a chance de assistir Natalie Portman travando uma batalha sangrenta contra uma cutícula rebelde (literalmente) na maior tela possível — e de reviver um dos mais marcantes retratos de arte e loucura do século 21.

Antes de Cisne Negro: um casamento antigo entre ballet e desequilíbrio
Muito antes de Aronofsky, o cinema já havia percebido que o ballet é um cenário ideal para histórias de obsessão e tragédia. Em Os Sapatinhos Vermelhos (1948), de Powell e Pressburger, a protagonista é tragada por sua devoção à dança, incapaz de equilibrar amor e carreira até um fim fatal. Em Suspiria (1977), Dario Argento transforma uma escola de ballet em fachada para um covil de bruxas. Mesmo Luzes da Ribalta (1952), de Charles Chaplin, embora não seja sobre ballet, examina a fragilidade emocional de artistas no ocaso. Em todos esses casos, o palco é o véu que esconde bastidores de sacrifício e dor.
O ballet é, por natureza, cinematográfico: a leveza e o controle perfeitos vistos pelo público contrastam com a disciplina militar, os corpos exaustos e a pressão psicológica nos bastidores. É nesse contraste que o cinema encontra combustível para histórias intensas.
A semente de Cisne Negro e a influência pessoal de Aronofsky
Darren Aronofsky não chegou ao ballet por acidente. O diretor, que já havia mergulhado em personagens autodestrutivos em Pi (1998), Réquiem para um Sonho (2000) e O Lutador (2008), cresceu no Brooklyn com uma irmã bailarina clássica profissional. Desde cedo, conheceu a rotina de ensaios, a pressão estética e o ambiente competitivo da dança. Cisne Negro começou como uma ideia mais próxima de All About Eve, centrada em rivalidade artística, mas rapidamente incorporou elementos de horror psicológico, metáforas corporais à la David Cronenberg e o conceito do duplo (doppelgänger).

Elenco, dedicação e polêmica
Quando escalou Natalie Portman para viver Nina Sayers, Aronofsky queria mais do que uma boa atriz — buscava alguém disposta a submeter corpo e mente a um processo rigoroso. Portman treinou ballet por meses, emagreceu radicalmente e absorveu a postura e o gestual da bailarina. Mas para as cenas mais complexas, a produção contou com Sarah Lane, então solista do American Ballet Theatre, como dublê. A polêmica veio quando Lane acusou a produção de minimizar seu trabalho, gerando um debate sobre crédito e autenticidade no cinema.
Ao lado de Portman, Mila Kunis interpretou Lily, a rival que exala confiança e instinto — e que Nina teme e deseja na mesma medida. Vincent Cassel, como o diretor artístico Thomas Leroy, funcionou como catalisador, manipulando e pressionando Nina a ultrapassar limites.
Nina Sayers: pureza, sombra e colapso
Nina é a Odette perfeita: frágil, controlada, impecável. Mas para ser Odile, precisa encontrar seu lado selvagem, algo que ela reprime obsessivamente. Aronofsky constrói sua deterioração psicológica como um balé de paranoias, visões e alucinações: penas brotando na pele, unhas arrancadas, reflexos que se movem sozinhos. É uma narrativa sobre identidade fragmentada e sobre o preço de tentar ser perfeita — quando perfeição, na verdade, é impossível.

Ballet como terror: o monstro dentro da bailarina
Ao contrário de Suspiria, aqui não há bruxas ou maldições externas. O “monstro” é Nina, e sua transformação é interna — uma batalha mental que se manifesta no corpo. Essa escolha mantém o filme ambíguo: é metáfora sobre saúde mental ou relato literal de metamorfose? Aronofsky nunca respondeu, e o público segue dividido.
Para espectadores leigos, Cisne Negro ofereceu um vislumbre estilizado e hipnótico do ballet. Para bailarinos, o retrato soou exagerado, mas respeitoso. “Não é piada”, disse Chloe Misseldine, do American Ballet Theatre. “Tudo é exagerado, mas o filme trata o ballet com seriedade.”
O final e a ambiguidade
Na apresentação final, Nina se fere, mas dança até o fim. Ao receber a ovação, diz: “Eu senti a perfeição.” Ela morre? Foi alucinação? Aronofsky deixa a resposta em aberto. O que importa é que, para Nina, aquele instante foi o ápice — e, talvez, o último.
O impacto e os números
Lançado em dezembro de 2010, o filme arrecadou mais de 329 milhões de dólares mundialmente, com um orçamento de cerca de 13 milhões. Recebeu cinco indicações ao Oscar — Melhor Filme, Direção, Fotografia, Montagem e Atriz —, levando a estatueta para Natalie Portman. A performance ainda garantiu a ela o Globo de Ouro, SAG Awards e BAFTA.
Cisne Negro influenciou diretamente a bilheteria de montagens de O Lago dos Cisnes e reforçou o vínculo entre ballet e narrativas sombrias. Quinze anos depois, seu figurino (o tutu negro, a tiara, a maquiagem dramática) e suas frases permanecem ícones culturais.

15 anos depois: IMAX, nostalgia e novas leituras
As sessões IMAX de agosto não são apenas celebração; são um lembrete do impacto estético do filme. Ver a fotografia de Matthew Libatique em escala gigante, com o som perturbador e a trilha de Clint Mansell expandida, deve ser como redescobrir o filme. É também um aceno para novos públicos: para quem viu em streaming ou numa tela pequena, agora é a chance de vivenciar Cisne Negro como ele foi concebido — imersivo, sufocante e belo.
Enquanto isso, Aronofsky já prepara seu retorno aos cinemas com Caught Stealing, estrelado por Austin Butler e Zoë Kravitz, que estreia dias depois dessas sessões. Portman segue diversificando papéis, aparecendo recentemente em Fountain of Youth ao lado de John Krasinski.
Quinze anos depois, Cisne Negro continua sendo o exemplo mais visceral de como o cinema pode explorar a beleza e a destruição no mesmo passo de dança. Uma história que, como Os Sapatinhos Vermelhos e Suspiria, entende que o palco é apenas a superfície — e que, por trás do aplauso, existe sempre um preço.
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