Ofélia é, talvez, a mais emblemática das ausências presentes de Shakespeare. Ela ocupa pouco tempo de cena, fala menos do que qualquer personagem central e, no entanto, tornou-se a imagem mais inesquecível de Hamlet. Filha do conselheiro Polônio e irmã de Laertes, é apresentada como a “boa filha” obediente, a prometida do príncipe Hamlet — moldada pelo dever, pela vigilância masculina e pela vida de corte. No início, é uma figura discreta, quase apagada, sempre respondendo “I shall obey, my lord” às ordens do pai. Mas a engrenagem política e emocional que se arma ao redor dela vai afunilando seu destino até deixá-la sem ar — e, finalmente, sem chão.
A fragilidade aparente esconde uma sensibilidade aguçada. Quando Hamlet decide fingir-se louco para desmascarar o tio assassino, Ofélia torna-se alvo involuntário do seu jogo. O rompimento brutal e público (“Get thee to a nunnery”) é só o primeiro golpe. A morte de Polônio, às mãos de Hamlet, rasga o último vínculo que a prendia ao mundo estável. O que se segue é uma das mais belas e dolorosas derrocadas da literatura: ela começa a falar em fragmentos, cantando baladas populares (“How should I your true love know…”, “Tomorrow is Saint Valentine’s Day”), distribuindo flores reais e simbólicas (“There’s rosemary, that’s for remembrance; and there is pansies, that’s for thoughts”), e enfileirando provérbios, ditos e memórias desconexas. É a fala de alguém cuja mente se desorganizou, mas também de quem ainda tenta comunicar algo — um lamento cifrado que mistura perda, erotismo, culpa e superstição.

Dramaticamente, Ofélia funciona como o espelho quebrado de Hamlet. Ele pode explorar a loucura como artifício, ela afunda nela sem volta. Sua queda arrasta Laertes para o desejo de vingança, humaniza a trama política e insere na peça um lamento íntimo: o custo cobrado às mulheres quando o poder transforma a vida em tabuleiro. Sua morte — contada por Gertrude num dos relatos mais poéticos de Shakespeare (“There is a willow grows aslant a brook…”) — é uma suspensão lírica: o salgueiro inclinado, o riacho, as guirlandas de flores, o vestido que boia como “sereias”, até que o peso da roupa a puxa para o fundo. É acidente? É suicídio? O funeral, com ritos mutilados, sugere que a corte suspeita de “desperate hand”, gesto desesperado — e, no universo cristão da peça, pecado a ser punido mesmo após a morte.
Ofélia não existia nas fontes originais da lenda de Hamlet. Shakespeare a criou, mas o nome já aparecia um século antes na Arcadia de Jacopo Sannazaro, provavelmente derivado do grego ōphéleia, “auxílio”. Desde então, a personagem virou espelho para discutir a “loucura feminina” e, no século 19, objeto preferido da pintura pré-rafaelita. John Everett Millais pintou-a entre 1851 e 1852, com Elizabeth Siddal posando horas a fio dentro de uma banheira para reproduzir a sensação de corpo submerso. A modelo adoeceu no processo, o que alimentou o mito da pintura. A imagem — vestido esvoaçante, mãos abertas, flores flutuantes — tornou-se sinônimo de Ofélia. Depois vieram as variações de J. W. Waterhouse, as telas românticas de Eugène Delacroix, as fotografias de Julia Margaret Cameron com Ellen Terry no figurino. Cada geração encontrou sua maneira de congelar aquele momento entre vida e afogamento.

No palco, Ofélia foi vivida por Ellen Terry no século 19, Jean Simmons no cinema de Laurence Olivier (1948), Helena Bonham Carter sob a direção de Franco Zeffirelli (1990) e Kate Winslet na adaptação integral de Kenneth Branagh (1996). Em 2009, Gugu Mbatha-Raw viveu a personagem com Jude Law e levou ao ensaio discussões com psiquiatras para mapear com precisão seu estado mental. Cada atriz enfrenta o desafio de não transformar a dor em pura decoração — de evitar que Ofélia seja só um quadro bonito e triste.
E não foi só o teatro e a pintura que se apropriaram dela. No balé, Hamlet ganhou montagens onde a cena da loucura e o afogamento de Ofélia se transformam em solos delicados e fisicamente extenuantes, exigindo que a bailarina traduza o desmanche mental em movimentos que oscilam entre a rigidez e o abandono. Na música, compositores como Hector Berlioz criaram canções inspiradas nela (La mort d’Ophélie), Gabriel Fauré musicou o texto em tom quase de lamento fúnebre, e até a banda The Lumineers evocou seu nome como símbolo de perda e pureza ameaçada.

O cinema recente tentou resgatar sua voz. Em Ophelia (2018), dirigido por Claire McCarthy e estrelado por Daisy Ridley, a história é contada do ponto de vista da jovem. Baseado no romance de Lisa Klein, o filme devolve agência à personagem: vemos seus pensamentos, estratégias e uma leitura em que ela não morre no riacho, mas foge, reinventando seu destino. Naomi Watts interpreta Gertrude, Clive Owen é Claudius, e George MacKay faz um Hamlet mais vulnerável. A fotografia, saturada de verdes e azuis, ecoa os quadros pré-rafaelitas, e a trilha sonora mistura canto medieval e atmosfera etérea para reforçar que estamos dentro do olhar de Ofélia — não da corte que a assistiu calada.
Falas célebres ajudam a “explicar” Ofélia tanto quanto a mostram:
- “O, what a noble mind is here o’erthrown!” — sobre Hamlet, mas também sobre si mesma, como se pressentisse o destino.
- “There’s rosemary, that’s for remembrance… and there is pansies, that’s for thoughts.” — a cena das flores, onde cada planta é uma mensagem velada.
- “Lord, we know what we are, but know not what we may be.” — um lampejo de consciência filosófica no meio da ruptura.
- O relato de Gertrude, inteiro, que transforma a morte em poesia visual.

Quatro séculos depois, Ofélia continua a nos assombrar porque concentra questões que não envelhecem: até onde a lealdade pode ir? Como sobreviver a um luto privado quando se vive num palco público? Como resistir quando se é “figurante” na própria vida? Talvez por isso a cultura pop não a deixe afundar. Taylor Swift, que já transformou Shakespeare em refrão com “Love Story”, incluiu no próximo álbum The Life of a Showgirl uma faixa chamada “The Fate of Ophelia”. Fãs apontam que imagens promocionais remetem diretamente à pintura de Millais, com flores aquáticas e vestidos fluidos. É o gesto típico de Swift: resgatar uma figura feminina esmagada pela narrativa tradicional e devolvê-la à canção como protagonista.
Ofélia começou como um papel pequeno, pensado para refletir a tragédia de outro. Mas saiu da peça e atravessou séculos, línguas, telas, palcos e partituras. Ela está no pincel de Millais, na voz de Berlioz, na sapatilha da bailarina, no close de Daisy Ridley e, em breve, talvez, na melodia de Taylor Swift. Uma personagem que Shakespeare apagou no ato final, mas que o mundo se recusa a deixar morrer.
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