Há histórias que ultrapassam a barreira do thriller político para se tornarem verdadeiras tragédias humanas. A Spy Among Friends é uma delas. Lançada em 2022 como minissérie e inspirada no livro de Ben Macintyre (2014), a produção agora disponível na Max não apenas revive um dos episódios mais famosos da espionagem britânica, mas também mergulha naquilo que torna esse caso inesquecível: a mistura de confiança cega, lealdade de classe e uma traição que devastou tanto nações quanto amizades.
A série
Na adaptação televisiva, Guy Pearce encarna Kim Philby, o espião duplo mais célebre do século 20, enquanto Damian Lewis vive Nicholas Elliott, colega de MI6 e amigo íntimo que acreditava conhecê-lo melhor que ninguém. O choque entre esses dois homens, entre camaradagem e mentira, dá o tom da minissérie.
Com ritmo elegante, quase teatral, a narrativa prioriza diálogos, silêncios e o peso psicológico da amizade ferida, em vez de ação ou tiroteios. A criação de Alexander Cary e a direção de Nick Murphy acentuam a atmosfera sufocante da Guerra Fria, onde nada era o que parecia e todos eram obrigados a desconfiar — menos Elliott, que confiou demais.

O livro
O material original, escrito por Ben Macintyre, já era um best-seller antes da adaptação. Lançado em 2014, A Spy Among Friends: Kim Philby and the Great Betrayal se destacou ao humanizar a espionagem. Não é um inventário frio de traições e operações, mas um retrato íntimo da amizade entre Philby e Elliott. É um livro que lê como romance, mas cada página nos lembra que a história é real demais para ser inventada.
Macintyre revela não só os segredos trocados entre MI6 e KGB, mas também o abismo emocional que se abre quando se descobre que o amigo de confiança, aquele com quem se dividia vinho, piadas e confidências, era, na verdade, o maior traidor de sua geração.
A história real
Kim Philby existiu. Foi parte do grupo de Cambridge, recrutado pelo comunismo nos anos 1930, e passou décadas entregando informações valiosas para Moscou enquanto subia na hierarquia do MI6. A escala de sua traição é quase incalculável: operações arruinadas, agentes mortos, a confiança entre aliados corroída.
Mas é no episódio final, em Beirute, que a história ganha contornos de tragédia clássica. Elliott foi enviado para interrogá-lo, acreditando poder arrancar uma confissão — talvez até redimir o amigo. Dias depois, Philby desaparecia em um navio soviético rumo a Moscou. Até hoje paira a dúvida: Elliott o deixou escapar, por amizade ou por obediência a ordens superiores? Ou teria sido apenas manipulado até o último instante?
Philby viveu o resto da vida em Moscou, tratado como herói da União Soviética, e morreu em 1988 sem nunca se arrepender. Elliott, por sua vez, ficou com a sombra da culpa e o peso de ter confiado demais


O apelo da história
O que torna A Spy Among Friends irresistível não é apenas o peso histórico da Guerra Fria, mas o drama universal da traição íntima. Philby não enganou apenas o país, enganou os amigos, a esposa, os colegas, o próprio círculo social que o blindava.
O livro, a série e a realidade se entrelaçam nesse ponto: não estamos apenas diante de um espião brilhante ou de um traidor implacável, mas de um homem que mostrou como amizade e confiança podem ser usadas como armas. É Shakespeare em plena Guerra Fria.
E talvez seja isso que mantenha viva a lenda de Kim Philby: não basta falar de ideologia ou de política. Sua história toca no que mais nos assusta — a ideia de que quem está ao nosso lado pode ser, na verdade, o inimigo.
O Philby real, o do livro e o da série
Há muitas formas de contar uma história, e Kim Philby acabou ganhando versões diferentes, cada uma reveladora à sua maneira.
O Philby real: histórico, concreto, quase burocrático em sua frieza. Um homem que viveu entre duas lealdades e escolheu a União Soviética até o fim, mesmo diante das purgas, dos crimes de Stálin e da decadência de Moscou. Ele morreu em 1988, condecorado como herói soviético, sem jamais demonstrar arrependimento. Era o traidor perfeito — e, ao mesmo tempo, o amigo que ria, bebia e encantava todos à sua volta.
O Philby do livro de Ben Macintyre: aqui, ele ganha espessura literária. Macintyre o apresenta como um personagem ambíguo, quase novelesco, com charme irresistível e crueldade silenciosa. É o homem que transformou amizade em ferramenta, que usou vínculos pessoais como disfarce para sua traição. O livro não procura santificá-lo nem demonizá-lo — prefere expor o paradoxo: como alguém tão sociável, tão querido, podia carregar dentro de si a lealdade a um inimigo invisível.

O Philby da série: encarnado por Guy Pearce, é o mais humano e, ao mesmo tempo, o mais teatral. A adaptação dramatiza o silêncio, o olhar, o gesto de confiança quebrada. É menos sobre documentos e mais sobre psicologia: a tensão entre o afeto de Elliott e o enigma de Philby. A série nos faz sentir o peso da traição não em cifras ou relatórios, mas em conversas entre amigos, em copos de uísque divididos, em perguntas sem resposta.
Em cada camada — real, literária e dramatizada — Philby se revela um pouco mais. Não existe uma única verdade, mas a soma delas é o que explica seu fascínio. Ele foi o espião mais danoso da Guerra Fria, mas também o amigo que arrancou o coração de quem confiou nele.
No fim das contas, A Spy Among Friends não fala apenas sobre espionagem. Fala sobre a fragilidade dos vínculos humanos. Fala de como a confiança, quando depositada no lugar errado, pode se transformar na arma mais letal.
Philby continua a nos fascinar porque não é apenas um personagem da Guerra Fria — ele é um lembrete perturbador de que a pior traição não vem do inimigo declarado, mas do amigo que senta ao nosso lado.
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