Em julho de 2022, o Brasil inteiro se voltou para um podcast que parecia misturar mistério urbano e denúncia social. “A Mulher da Casa Abandonada”, criação do jornalista Chico Felitti, nasceu de uma cena insólita: uma mansão em ruínas no coração de Higienópolis, um dos bairros mais nobres de São Paulo, habitada por uma senhora excêntrica que circulava sempre com o rosto coberto por uma espessa camada de pomada branca. Para os vizinhos, tratava-se de uma figura folclórica, quase um fantasma urbano. Mas a investigação revelou uma história perturbadora, que atravessava fronteiras e décadas.
A mulher da pomada branca era Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti, herdeira de uma família tradicional paulista. Nos anos 1970, após se casar com o engenheiro Renê Bonetti, ela se mudou para os Estados Unidos. O casal levou consigo a empregada doméstica Hilda Rosa dos Santos, uma brasileira que, por quase duas décadas, viveria em silêncio e sob condições degradantes.
O crime: trabalho forçado e violência silenciosa
Segundo investigações do FBI e relatos posteriores, Hilda foi mantida em condições análogas à escravidão: dormia em um porão, comia restos de comida, não tinha acesso a atendimento médico e trabalhava sem remuneração adequada. O confinamento era controlado a ponto de colocarem cadeado na geladeira para impedir que ela se alimentasse livremente. Vizinhos relataram cenas de humilhação e descuido.
O caso chegou às autoridades no início dos anos 2000. Nos Estados Unidos, Renê e Margarida foram denunciados formalmente por crimes relacionados a exploração de trabalho forçado. A Justiça americana reconheceu a gravidade da situação, mas o destino dos dois foi muito diferente.

O julgamento e a fuga de Margarida
Renê, que havia se naturalizado cidadão americano, foi processado, julgado e condenado a seis anos e meio de prisão, além de ser obrigado a pagar US$ 110 mil de indenização à vítima. Após cumprir a pena, retomou sua carreira como engenheiro e hoje trabalha em empresas de ponta no setor aeroespacial nos EUA, entre elas a Northrop Grumman. Vive discretamente, mas conseguiu se reinserir profissionalmente.
Já Margarida nunca se naturalizou americana. Seguiu sendo apenas cidadã brasileira. Isso lhe permitiu fugir antes da conclusão do julgamento: ela voltou para o Brasil e se refugiou no casarão da família em Higienópolis. Pela Constituição, brasileiros natos não podem ser extraditados, e o processo contra ela prescreveu. Assim, embora seja considerada foragida pela Justiça dos EUA, Margarida nunca foi julgada nem presa. Até hoje vive reclusa na antiga mansão, que com o tempo caiu em ruínas e se tornou metáfora de decadência e mistério.
E a vítima, Hilda Rosa dos Santos?
Hilda recebeu a indenização estabelecida pela Justiça americana. Contudo, diferentemente do que muitos imaginaram, ela nunca voltou ao Brasil. Permaneceu nos Estados Unidos, onde construiu uma vida discreta após finalmente se libertar da família Bonetti.
Por que não voltou? Alguns fatores ajudam a explicar:
- O trauma profundo da experiência, que a afastou da terra natal associada ao passado de violência.
- O apoio que passou a receber nos EUA, tanto de órgãos de proteção quanto de comunidades locais.
- O receio de que, no Brasil, sua história fosse esquecida ou relativizada — algo que o podcast e depois o documentário acabaram revertendo ao lhe dar visibilidade.
Hilda tem familiares no Brasil, mas mantém-se nos EUA, onde se reconstruiu. Em 2025, rompeu quase três décadas de silêncio ao aparecer pela primeira vez em vídeo no documentário do Prime Video, dando rosto e voz à dor que por tanto tempo ficou abafada.
A casa antes do escândalo
O casarão onde Margarida vive até hoje não era apenas mais uma mansão em Higienópolis. Ele foi construído no início do século XX pela família Vicente de Azevedo, descendentes diretos do Barão de Bocaina, um dos últimos barões do Império, ligado ao café, à política e ao desenvolvimento de São Paulo. Décadas depois, o imóvel foi ocupado por Geraldo Vicente de Azevedo, médico respeitado e pai de Margarida, conhecido por sua filantropia.
Ou seja, a casa já carregava um passado de prestígio e poder. Transformar-se em ruína, abrigando uma mulher foragida de um crime de repercussão internacional, é parte do contraste que tanto fascina o público. O que já foi símbolo de status virou imagem da decadência — uma casa tomada por entulho, multas da Prefeitura por abandono e vizinhos curiosos.

O filho do casal
Pouco se fala dele, mas Margarida e Renê tiveram um filho único, nascido nos EUA. Ele nunca esteve envolvido diretamente no processo judicial. Vive de forma discreta nos Estados Unidos, longe da mídia e do escândalo que cercou os pais. Seu nome é preservado, e não há registros de participação em entrevistas ou no documentário.
O impacto do podcast
Quando Chico Felitti lançou “A Mulher da Casa Abandonada”, o podcast rapidamente se tornou um fenômeno cultural. Com milhões de downloads, ficou no topo dos rankings de podcasts mais ouvidos do Brasil e chegou ao público internacional. O caso, que poderia ter ficado esquecido como mais uma nota de jornal, ganhou repercussão mundial.
O fascínio vinha da combinação de elementos: o mistério da mulher excêntrica, a decadência de uma mansão histórica, a denúncia de um crime brutal e a impunidade escancarada. Era ao mesmo tempo um relato de true crime e um espelho das desigualdades e da violência estrutural que atravessam a sociedade brasileira.

Do áudio à tela: o documentário
Em 2025, a história ganhou nova dimensão no Prime Video, com a série documental em três episódios dirigida por Kátia Lund, em parceria com Lívia Gama e Yasmin Thayná. Diferente do podcast, o documentário trouxe novos documentos oficiais, depoimentos de agentes do FBI, entrevistas com especialistas e, sobretudo, a presença inédita de Hilda.
O grande mérito da série é deslocar o foco: se o podcast girava em torno do mistério de Margarida, o documentário devolve à vítima o protagonismo. Hilda aparece não apenas como lembrança de violência, mas como sobrevivente que reconstruiu a própria vida.
O que resta hoje
- Margarida Bonetti segue vivendo reclusa na casa em ruínas de Higienópolis.
- Renê Bonetti, após cumprir pena, refez sua carreira nos EUA.
- Hilda Rosa dos Santos continua vivendo nos Estados Unidos, agora com voz e visibilidade recuperadas.
- O casarão permanece como símbolo de decadência e impunidade em um dos bairros mais nobres de São Paulo.
O caso da mulher da casa abandonada atravessa tempos e formatos: de mansão aristocrática a ruína; de silêncio imposto à vítima a depoimentos que ecoam no mundo; de um podcast de enorme alcance a um documentário internacional. Mais do que curiosidade, a história de Margarida Bonetti, Renê Bonetti e Hilda Rosa dos Santos é um lembrete do quanto a impunidade pode se perpetuar — mas também do poder da memória, do jornalismo e da denúncia para devolver voz a quem foi silenciado.
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