Poucas peças conseguiram atravessar o tempo com tanta força quanto Amadeus, de Peter Shaffer. Escrita em 1979, ela nasceu de um rumor persistente, daqueles que atravessam os séculos: teria Antonio Salieri envenenado Mozart? A história, claro, já existia em versões anteriores – Pushkin escreveu sua curta tragédia Mozart e Salieri em 1830, Rimski-Korsakov a musicou, e o mito da rivalidade ficou pairando no imaginário. Mas Shaffer deu um passo além: transformou o boato em metáfora. Em sua versão, Salieri é um homem consumido por reconhecer a presença do divino no outro. Devoto, disciplinado, admirador da música, mas incapaz de alcançar a genialidade que Mozart exalava sem esforço. O resultado é uma das mais dolorosas e fascinantes reflexões do teatro moderno: o que fazemos diante da injustiça do talento, quando o mundo distribui dons de forma arbitrária?
A peça se estrutura como uma confissão. Salieri, já idoso, fala diretamente ao público e revive sua relação com Mozart, esse prodígio insolente que se comportava como um menino vulgar, mas que escrevia música como se fosse ditada por Deus. O contraste entre o comportamento quase grotesco de Mozart e a perfeição de suas partituras gera a tensão que sustenta toda a narrativa. Ao mesmo tempo, Shaffer não trata Salieri apenas como vilão, mas como uma figura profundamente humana – amarga, irônica, desesperada diante do dom alheio.


A estreia aconteceu em Londres, no National Theatre, em 1979, sob direção de Peter Hall, com Paul Scofield como Salieri e Simon Callow como Mozart. Logo ficou claro que havia algo especial ali. Em 1980, a peça chegou à Broadway com Ian McKellen e Tim Curry nos papéis principais e conquistou o Tony de Melhor Peça. Aliás, que dupla! Curry, que vinha de Rocky Horror Show e McKellen, treinado no mais clássico do teatro? Queria ter a máquina do tempo para ver uma apresentação das duas lendas no palco.
Desde então, Amadeus se tornou um dos grandes rituais do palco: uma obra que exige de seus intérpretes o mesmo rigor de um Hamlet ou de um Rei Lear. O papel de Salieri, em especial, virou desafio para grandes atores – de McKellen a David Suchet (que vi na Broadway em 1998, com o genial Michael Sheen como Mozart) , de F. Murray Abraham a Lucian Msamati, este último responsável por uma montagem brilhante no National Theatre em 2016, que ainda trouxe orquestra e coro em cena e foi transmitida pelo projeto NT Live para cinemas do mundo todo.


Se o texto já era imenso no teatro, foi no cinema que ele alcançou a imortalidade. Em 1984, Milos Forman dirigiu a adaptação escrita pelo próprio Shaffer, com Tom Hulce como Mozart e F. Murray Abraham como Salieri. O filme trocou a rigidez da encenação teatral por flashbacks narrados por um Salieri em um hospício, dando à história um tom ainda mais sombrio e intimista. E, sobretudo, colocou a música de Mozart no centro, costurando cenas com árias e sinfonias que elevavam a emoção a alturas quase insuportáveis. O resultado foi histórico: onze indicações ao Oscar, oito vitórias, incluindo Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator para Abraham e Melhor Roteiro Adaptado. É até hoje considerado uma das melhores obras já feitas sobre música e sobre a fragilidade humana diante da genialidade.
Desde então, a peça não parou de voltar. Cada remontagem, em Londres ou na Broadway, atualiza seu olhar sobre poder, inveja, fé e privilégio. E agora, mais de quarenta anos depois, Amadeus se prepara para uma nova vida, desta vez na televisão. Produzida pela Sky e pela Universal, a minissérie terá cinco episódios e estreia em 2025. Will Sharpe, conhecido por The White Lotus e Flowers, será Mozart, enquanto Paul Bettany viverá Salieri e Gabrielle Creevy interpretará Constanze, a esposa leal do compositor.

A trama começa com Mozart aos 25 anos, recém-chegado à Viena do século 18, em busca de liberdade criativa. Ele se casa com Constanze, conquista espaço na efervescente vida musical da cidade, mas também enfrenta desconfiança, escândalos e os próprios demônios internos. Ao mesmo tempo, Salieri, já estabelecido como compositor da corte, observa esse talento desmedido e começa a sentir a ferida aberta da inveja. O que nasce como admiração e competição se transforma em uma obsessão de trinta anos, que culmina em um delírio de assassinato e na tentativa desesperada de Salieri de entrelaçar sua própria identidade à de Mozart para sempre.
O elenco ainda conta com Rory Kinnear como o imperador José II, Lucy Cohu como Cecilia Weber, Jonathan Aris como Leopold Mozart, Ényì Okoronkwo como o libretista Lorenzo da Ponte, Jessica Alexander como Katerina, Hugh Sachs como Von Strack, Paul Bazely como Von Swieten e Rupert Vansittart como Rosenberg, além de Anastasia Martin, Nancy Farino, Olivia-Mai Barrett, Viola Prettejohn e Jyuddah Jaymes. A direção é de Julian Farino (Giri/Haji) e Alice Seabright (Sex Education), e o roteiro de Joe Barton (The Lazarus Project). As filmagens aconteceram em Budapeste ao longo de 2024, e a estreia está prevista para o final de 2025.
No fundo, é por isso que Amadeus continua vivo. Porque não é apenas sobre música clássica, nem sobre biografia. É sobre todos nós. Sobre a angústia de perceber que a vida pode ser injusta e que há dons que jamais alcançaremos. E, ao mesmo tempo, sobre a beleza de uma obra que, nascida da inveja e da dor, transforma-se em arte inesquecível.
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