Hamnet: A História Real por Trás de Shakespeare e o Luto que Virou Arte

Quando se pensa em Shakespeare no cinema, é quase inevitável lembrar de Shakespeare Apaixonado, o filme de 1998 que reinventou a juventude do dramaturgo como uma comédia romântica cheia de licenças poéticas. Ali, Joseph Fiennes interpretava um William enlouquecido de amor por Viola de Gwyneth Paltrow, uma musa inventada para justificar a criação de Romeu e Julieta (com fortes pitadas de Noite de Reis). Nenhum compromisso com a cronologia, nenhum respeito às fontes: era fantasia pura, um delírio divertido que funcionou muito bem em Hollywood. O resultado? Sete Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Atriz para Paltrow, fixando na cultura pop um Shakespeare sedutor e apaixonado, tão fictício quanto irresistível.

Hamnet, por sua vez, faz o movimento contrário. Em vez de romantizar o gênio, desloca o olhar para dentro de sua casa, para o universo íntimo que ele dividiu com sua esposa Agnes Hathaway e os filhos. Maggie O’Farrell, autora irlandesa que venceu o Women’s Prize for Fiction em 2020, partiu de um dado histórico incontornável: Shakespeare e Agnes perderam o filho Hamnet em 1596, aos 11 anos. Essa dor real, irreversível, passou séculos como nota de rodapé nas biografias. O’Farrell decide expandi-la em romance — e com isso desmonta a imagem cristalizada de Shakespeare como ícone romântico para revelar o homem, o marido, o pai enlutado.

A vida de William e Agnes: encontros, filhos e perdas

William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon e, ainda muito jovem, engravidou Anne Hathaway, aqui renomeada pela autora como Agnes. Ela era oito anos mais velha, filha de uma família de certa reputação local, e o casamento em 1582 foi praticamente inevitável: Agnes esperava um filho. Esse filho seria Susanna, a primogênita. Depois vieram os gêmeos Hamnet e Judith, batizados em 1585.

Do pouco que a história registrou, sabe-se que William logo passou a trabalhar em Londres, mergulhando na carreira teatral, enquanto Agnes permanecia em Stratford, cuidando dos filhos. A distância, como imaginam os estudiosos e como narra O’Farrell, não significava ausência emocional, mas sim uma divisão de papéis. O cotidiano da família Hathaway em Stratford foi marcado por alegrias domésticas e pela sombra da peste bubônica que assolava a Inglaterra.

A tragédia veio cedo: Hamnet morreu em 1596, aos 11 anos, provavelmente vítima da peste. Para um casal que já vivera a mortalidade infantil tão de perto (Judith também quase morreu quando criança), foi um golpe irreparável. Agnes perdeu o filho; William, ao que tudo indica, mergulhou no teatro para sublimar sua dor. Poucos anos depois, estreava Hamlet. Coincidência? Difícil acreditar.

O romance de Maggie O’Farrell: luto transformado em literatura

No livro Hamnet, Maggie O’Farrell transforma Agnes em protagonista. Longe de ser a esposa invisível que a tradição biográfica tantas vezes reduziu, ela surge como uma mulher conectada à natureza, de dons quase místicos, dona de uma força singular. A narrativa alterna entre o presente da doença de Hamnet e flashbacks do início do relacionamento do casal, do casamento e da vida doméstica.

Mais do que uma biografia, é uma reinvenção poética. O foco não está em Shakespeare, mas na intimidade de Agnes com os filhos e na tentativa de salvar Hamnet. O romance constrói a ideia de que o luto foi, em alguma medida, canalizado na criação artística: Hamlet, escrito poucos anos depois da perda, não apenas compartilha o nome, mas mergulha em questões de morte, memória e legado.

A crítica foi unânime em reconhecer o feito literário. Hamnet foi saudado como um dos grandes romances históricos da década, aclamado por sua escrita lírica e por devolver humanidade a figuras engessadas pela história.

A cena final: Agnes diante de Hamlet

O ponto mais comovente do romance é sua cena final. Após anos de silêncio e distância, Agnes viaja a Londres e entra no teatro onde o marido estreia sua nova peça. Ainda em luto, ela ouve o título — Hamlet — e sente imediatamente a dor da lembrança.

Enquanto a peça se desenrola, Agnes vê o filho refletido em cada gesto, em cada palavra dita pelo príncipe da Dinamarca. É como se Hamnet tivesse sido trazido de volta à vida, mas ao mesmo tempo como se sua ausência fosse ainda mais insuportável. O’Farrell descreve Agnes olhando o palco e entendendo que Shakespeare transformou a tragédia íntima em monumento: Hamlet, a peça, é o epitáfio, a lápide viva do filho perdido.

Não há uma citação literal destacada, mas o leitor reconhece ali ecos dos grandes solilóquios, da melancolia do “ser ou não ser” e da aceitação do destino em frases como “Há uma providência especial até na queda de um pardal”. É como se Agnes escutasse nas falas do príncipe as palavras que nunca pôde ouvir de Hamnet.

A adaptação para o cinema: Chloé Zhao e seu estilo sensorial

Em 2025, Hamnet ganhou nova vida nas telas sob direção de Chloé Zhao, vencedora do Oscar por Nomadland (2020). Zhao tem um estilo inconfundível: imagens etéreas, naturalismo quase documental, valorização de espaços abertos e da relação entre os personagens e a natureza. Em Hamnet, ela transpõe essa assinatura para o universo elisabetano, criando aquilo que descreveu como um “conto de fadas para adultos”.

O filme, produzido por Sam Mendes e Steven Spielberg, foi filmado no País de Gales em 2024 e estreou em setembro de 2025 no Festival de Toronto. Entrará em cartaz nos EUA em lançamento limitado em 27 de novembro de 2025, expandindo nacionalmente em 12 de dezembro, com distribuição internacional da Universal.

O elenco e a música

No centro da narrativa estão dois dos atores irlandeses mais celebrados de sua geração. Jessie Buckley (já indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por A Filha Perdida, 2021) interpreta Agnes com intensidade visceral, enquanto Paul Mescal (indicado ao Oscar de Melhor Ator por Aftersun, 2022) dá vida a William Shakespeare, aqui visto mais como homem comum que como ícone. A química entre eles, segundo quem já assistiu, sustenta a força emocional da história.

O jovem Jacobi Jupe interpreta Hamnet, em uma atuação delicada e dolorosa. Completam o elenco nomes como Emily Watson e Joe Alwyn.

Na trilha sonora, Max Richter compõe um tecido musical de pura emoção. Conhecido por The Leftovers e por álbuns que exploram o pós-minimalismo, Richter trouxe para Hamnet melodias que, segundo Jessie Buckley, foram capazes de arrancar lágrimas da equipe e do público.

Recepção crítica inicial

A exibição oficial em Toronto será no dia 7 de setembro, mas críticos que já viram falaram em uma obra de rara sensibilidade, que foge do academicismo das biografias tradicionais e aposta na imersão sensorial: imagens de natureza, o silêncio do luto, a música como catarse. É visto como candidato forte na temporada de prêmios, sobretudo pela intensidade das atuações de Buckley e Mescal e pela direção lírica de Zhao.

A ligação entre Hamnet e Hamlet

Historicamente, sabemos que Hamnet Shakespeare morreu em 1596 e que Hamlet foi escrito por volta de 1600. As duas grafias eram intercambiáveis na época: Hamnet e Hamlet eram variações comuns do mesmo nome. Mais do que a coincidência, há o contexto. Shakespeare, tendo perdido um filho tão jovem, logo escreveu a maior meditação teatral da história sobre vida, morte e memória. O príncipe Hamlet, assombrado por fantasmas e obcecado pelo sentido da existência, ecoa a dor de um pai em luto.

O romance de O’Farrell, e agora o filme de Zhao, abraçam essa lacuna: a ideia de que Shakespeare transformou a tragédia íntima em arte imortal. Não há provas documentais, mas há poesia suficiente para convencer.

Hamlet antes de Hamnet: o príncipe dinamarquês

É importante lembrar que Shakespeare não inventou a trama de Hamlet do nada. Sua fonte foi uma antiga lenda nórdica registrada por Saxo Grammaticus no século 12, no livro Gesta Danorum. Ali aparece a figura de Amleth, príncipe da Dinamarca que finge loucura para sobreviver depois que o tio assassina o pai e toma o trono.

Essa narrativa circulou em adaptações francesas no século 16, que Shakespeare provavelmente leu. Ou seja, existia, sim, um “Hamlet” anterior — o Amleth lendário. Mas era mais mito do que história, uma mistura de crônica com saga heróica.

O que Shakespeare fez foi tomar essa base folclórica e, após a perda do filho, vesti-la com o peso do luto. O Amleth dinamarquês deu o esqueleto da trama; Hamnet, o menino real, deu a carne e a alma.

O que temos, então, é uma fusão tripla: O mito escandinavo de Amleth, que fornece o enredo da vingança, do fantasma e da loucura fingida; O menino real, Hamnet Shakespeare, cuja morte em 1596 marcou a vida de William e Agnes e, finalmente, a peça de Shakespeare, Hamlet, que une mito e dor pessoal, criando a maior tragédia da literatura inglesa.

A teoria de que Hamlet seria uma homenagem direta a Hamnet é poderosa e sedutora. Mas, curiosamente, há outras obras de Shakespeare que parecem ecoar ainda mais claramente a presença do filho perdido.

Especialistas citam Twelfth Night (Noite de Reis), a comédia que traz um casal de gêmeos — Viola e Sebastian — separados por um naufrágio. Cada um acredita que o outro está morto, como uma citação à morte do filho. É difícil não ver nesse enredo um reflexo de Hamnet e Judith, os gêmeos de Shakespeare, separados para sempre pela morte de um deles.

Mas, mais ainda, é quase certo que o Soneto 33, um dos mais melancólicos da coletânea, tenha sido para Hamnet. Nele, Shakespeare descreve a sensação de perder algo precioso e inevitável, com imagens de nuvens que obscurecem o sol. Muitos estudiosos leem nele uma alusão velada ao luto de Shakespeare por Hamnet, porque quando diz que o “sol” – em inglês Sun, mesma pronúncia de Son (filho) – é sobre seu menino. “E ainda assim meu sol, certa manhã, brilhou / Com todo esplendor triunfante sobre minha fronte; / Mas ai de mim, foi meu apenas por uma hora, / Pois nuvens da região agora o encobriram de mim”, diz.

Assim, o menino está em mais de um lugar da obra paterna: não só no príncipe atormentado, mas na comédia da separação e na lírica dos sonetos.

All Is True (2018): o outro retrato do luto

Antes mesmo de Maggie O’Farrell e Chloé Zhao, o cinema já havia explorado essa ausência. Em 2018, Kenneth Branagh dirigiu e estrelou All Is True, com roteiro de Ben Elton. O filme se passa em 1613, após o incêndio do Globe Theatre, quando Shakespeare se retira definitivamente para Stratford.

Lá, reencontra Anne Hathaway (interpretada por Judi Dench) e as filhas, tentando reconstruir laços após anos de distância. O fantasma de Hamnet paira sobre tudo: Shakespeare planta um jardim em memória do filho e confronta culpas antigas. O elenco ainda inclui Ian McKellen como o Conde de Southampton, amigo íntimo do dramaturgo.

All Is True é visualmente deslumbrante, inspirado em quadros barrocos e elisabetanos, mas seu tom é melancólico, contemplativo, quase um epílogo. Não é sobre o auge criativo, mas sobre a velhice, a paternidade e o luto.

“E ainda assim meu sol, certa manhã, brilhou / Com todo esplendor triunfante sobre minha fronte; / Mas ai de mim, foi meu apenas por uma hora, / Pois nuvens da região agora o encobriram de mim”

Soneto 33 de Shakespeare

Comparado a Hamnet, mostra o outro extremo da dor: não a perda em si, mas o envelhecer com ela. O romance de O’Farrell (e o filme de Zhao) fala do impacto imediato; Branagh fala das feridas que nunca cicatrizam.

O mistério e o amor à Shakespeare resistem o teste do tempo. Se Shakespeare Apaixonado o cinema inventou uma musa fictícia para justificar Romeu e Julieta, Hamnet oferece outra resposta: o coração do dramaturgo não se alimentava apenas de paixões juvenis, mas também de lutos irreparáveis. A perda de Hamnet é o silêncio mais ensurdecedor da biografia de Shakespeare.

O livro de Maggie O’Farrell deu palavras a esse silêncio; o filme de Chloé Zhao lhe deu imagens, música e carne. Juntos, eles reconstroem não apenas o gênio, mas a família, a dor e o amor que moldaram algumas das maiores obras da literatura mundial. E sim, a corrida para o Oscar deve incluir o filme entre as principais categorias. Vamos acompanhar.


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