Vivemos um tempo em que assistir deixou de ser um ato passivo. Hoje, todos somos plateia e, ao mesmo tempo, críticos, narradores, produtores e até historiadores amadores. Nada chega ao espectador sem ser imediatamente dissecado, comparado, elogiado ou destruído nas redes sociais. O paradoxo é que essa cultura se alimenta de dois extremos: de um lado, o desejo insaciável por histórias “reais”, “históricas” ou “baseadas em fatos”; do outro, a paixão pela fantasia absoluta — dragões, vampiros, zumbis, galáxias inteiras inventadas.
O espaço do meio, aquele da pura ficção, cada vez mais estreita. O público quer sentir que aquilo que vê ou realmente aconteceu, ou é tão radicalmente distante que funciona como fuga total.


Quando a História Vira Espetáculo
The Gilded Age é um bom exemplo dessa nova lógica. O público não apenas assiste à vida da alta sociedade novaiorquina: corre para o Google, vasculha genealogias, compara quem é inspirado em quem, quais famílias realmente existiram. Há um prazer duplo — o de aprender história, mas também o de se perder na invenção dramatizada. Curiosamente, ninguém se incomoda quando Julian Fellowes muda detalhes, cria personagens novos ou adapta situações. Pelo contrário: a mistura de verdade e ficção enriquece a narrativa.
Algo semelhante acontece em Peaky Blinders. A gangue de Birmingham, os Shelby, nunca existiu exatamente daquela forma, mas foram inspirados em criminosos reais do início do século 20. À medida que a série avança, ela mistura nomes históricos (como o vilão da última temporada, Oswald Mosley, líder fascista britânico) com figuras inventadas. Essa oscilação entre realidade documentada e licença poética é justamente o que sustenta o fascínio da trama.


Outro caso notório: Vikings e sua sequência Vikings: Valhalla. Aqui, a história se baseia em personagens semi-lendários, como Ragnar Lothbrok, Lagertha e Leif Erikson. Muito pouco se sabe sobre eles — são figuras que vivem em fronteiras nebulosas entre fato e mito. A série preenche esses vazios com imaginação criativa, construindo diálogos, motivações, alianças e batalhas que jamais poderiam ser documentadas. E o público aceita, porque quer ao mesmo tempo ver “história” e se deixar levar pela fantasia.
Quando a Ficção Ganha Peso de História
No outro extremo, temos os universos puramente fictícios que passaram a ser tratados como cânones quase sagrados. House of the Dragon é exemplo claro: embora baseado em um livro que é fantasia pura (Fogo & Sangue), cada episódio é fiscalizado por fãs que cobram fidelidade quase documental. Pequenas diferenças de datas, relações ou personalidades viram motivo de debate inflamado. Algo semelhante acontece em Game of Thrones e, claro, em Star Wars. A galáxia inventada por George Lucas virou um mito cultural tão poderoso que não pode ser alterado sem levantar acusações de traição.


A contradição é evidente: tratamos a fantasia como se fosse história registrada. Dragões e jedis são discutidos com o mesmo rigor com que se discutem dinastias e guerras reais.
O Real Dramatizado
Do lado dos “fatos reais”, há uma proliferação de filmes e séries que só existem porque carregam o selo “baseado em uma história real”. É o boom do true crime, as cinebiografias de músicos, os dramas políticos. Até a vida de Shakespeare, sobre a qual pouco se sabe, virou alvo de especulação fílmica: roteiristas e diretores tentam “decifrar” suas peças como pistas autobiográficas. É uma tentativa de transformar arte em confissão, ficção em relato íntimo, texto em diário disfarçado.
Nesse campo se insere também King & Conqueror, da BBC. Como a figurinista Margrét Einarsdóttir deixou claro, “nunca foi para ser historicamente acurado”. A ideia não é fazer documentário, mas traduzir uma era distante em drama compreensível para o presente. As roupas, as cores, os gestos se tornam símbolos: vermelho como poder, couro como força feminina, azul que se transforma em púrpura conforme o personagem se aproxima do trono. É história reimaginada, sem medo de distorções, justamente porque o objetivo é transmitir humanidade, não datas corretas.


O Dilema do Espectador
Tudo isso mostra um dilema profundo. Queremos surpresas, mas criticamos alterações. Queremos autenticidade, mas não suportamos um excesso de invenção. Queremos fantasia, mas tratamos a fantasia como patrimônio histórico. Ao mesmo tempo, o rótulo de “baseado em fatos reais” se tornou uma garantia de interesse, mesmo quando a liberdade criativa é imensa.
A Verdadeira Obra
O resultado é que a série, o filme ou o livro não são mais o produto final. A verdadeira obra contemporânea é o debate que nasce em torno deles. The Gilded Age gera comparações com personagens reais; House of the Dragon cria discussões infindas sobre fidelidade; Star Wars é permanentemente disputado entre nostalgia e reinvenção; Peaky Blinders e Vikings viram laboratório de história e mito; King & Conqueror provoca reflexões sobre a verdade e a invenção.


E é aqui que entram as redes sociais. Plataformas como X, Instagram, TikTok e Reddit são os novos palcos em que essas narrativas se desdobram. Episódios são comentados em tempo real, personagens viram memes, decisões criativas rendem petições virtuais. A recepção coletiva passou a ser parte inseparável da própria obra. O que antes era uma série ou um filme, agora é também um fórum, um campo de batalha, um mural de interpretações infinitas.
No fim, talvez esse seja o verdadeiro espetáculo da nossa era: a narrativa existe, mas o que realmente importa é o que fazemos dela — a forma como a reinventamos, criticamos e remixamos em comunidade. A ficção já não está só na tela ou no livro. Está no modo como escolhemos viver, discutir e disputar as histórias.
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