O legado de Balanchine em Theme and Variations

Existem balés que parecem pertencer à história, como artefatos de um mundo desaparecido, e há balés que vivem como declarações, manifestos disfarçados de coreografia. Theme and Variations, criado por George Balanchine em 1947 para o American Ballet Theatre, pertence indiscutivelmente à segunda categoria. É, ao mesmo tempo, memória da Rússia imperial que ele deixou para trás e visão do que o balé poderia se tornar na América. É um monumento erguido a partir de passos, variações e uma geometria cristalina — uma obra que respira nostalgia e modernidade ao mesmo tempo.

Quando Balanchine voltou-se para o movimento final da Suíte nº 3 de Tchaikovsky, escolheu não apenas uma música, mas a própria história. A partitura evoca grandeza, fantasia imperial, majestade cerimonial. Em suas cascatas de variações que culminam numa polonaise, Balanchine ouviu o eco de Petipa, dos grandes espetáculos da corte de São Petersburgo. Mas em vez de recriar literalmente aquele passado, ele o abstraiu. Destilou sua essência em dança pura: sem narrativa, sem drama decorativo, apenas corpos desenhando arquitetura no espaço, corpos transformados em ritmo.

Na estreia, coube a Alicia Alonso e Igor Youskevitch a missão de dar vida ao balé. Alonso, já enfrentando sua progressiva perda de visão, parecia destinada ao papel: dançava de cor não só os movimentos, mas o palco e até a música. Mais tarde, ela recordaria: “Tecnicamente, foi muito difícil. Eu sempre tenho um bom ritmo de respiração com a minha dança, mas no final do balé é muito, muito difícil. O ar não é suficiente.” O desafio não era apenas físico, mas sobretudo musical: havia passagens em que o compasso da coreografia parecia desalinhado do compasso musical. “No final da minha variação”, ela explicou, “os passos tomavam cinco tempos quando a música estava em quatro. Isso significava que eu sempre sentia que estava atrasada, que precisava me apressar. Foi muito difícil.”

Esse tipo de tensão era deliberado. Balanchine gostava de “brincar” com seus intérpretes, propondo dificuldades quase impossíveis. Alonso admitia: “Era um pouco de jogo, ao meu custo, porque ele dizia que ia colocar tudo muito difícil, e eu ia trabalhar e conseguiria. E dessa vez, ele deu de verdade.” Esse jogo de provocações e desafios se tornou uma batalha silenciosa entre ambos — um duelo criativo em que nem o coreógrafo nem a bailarina aceitavam ceder.

Alicia rejeitava a ideia de que Balanchine tivesse construído o balé em torno de seus pontos fortes, como alguns críticos sugeriram. “Ele nunca trabalhou com o que era fácil para mim. Ele trabalhava pela sua própria inspiração. Sempre mais difícil, mais difícil, para ver se desistiríamos. E eu nunca desisti. Sempre fui muito obstinada: se eu tinha que fazer algo, eu fazia. Acho que ele admirava isso.”

Sua interpretação estabeleceu o paradoxo no coração de Theme and Variations: que controle absoluto e entrega absoluta precisam coexistir, que a clareza da linha deve fundir-se com a majestade inefável.

Para qualquer bailarina que o enfrenta, o balé permanece uma prova de fogo. Não é apenas um Everest técnico — ainda que o seja, com sua sucessão implacável de piruetas, saltos e passos cristalinos — mas também uma provação estética. Vencer esse desafio não é apenas exibir virtuosismo; é encarnar majestade. A intérprete deve parecer flutuar acima do cansaço, irradiar uma autoridade que não é pessoal, mas arquetípica. Nesse sentido, Theme and Variations não é apenas coreografia, é ritual: o ritual de testar se a tradição clássica ainda pode viver, se o sonho imperial pode ser renovado através do corpo de uma bailarina.

Isso porque o resultado foi um balé que, segundo Alicia Alonso, não oferecia respiros. Cada solo apresentava não apenas variação técnica, mas também facetas de personalidade: “Para mim, cada solo mostrava uma parte diferente da bailarina. Um era fresco, rápido e elegante; outro tinha cadência, adagio, mais romântico; outro era puro virtuosismo técnico. Nenhum era fácil. Mas juntos formavam uma continuidade, uma visão completa.”

Eu dançava com a música, mas não estava consciente do valor da dança com a música. Eu tinha a sensação de que para Mr. Balanchine, o número um era a música e o número dois, a bailarina. Uma vez ele me disse que ele não via bailarinos, o que via eram as notas da música dançando“.
Alicia Alonso sobre George Balanchine e Theme and Variations

O pas de deux final, que surge logo após a variação da mulher, invertendo a ordem tradicional, era especialmente extenuante: “Isso foi muito difícil, porque geralmente o pas de deux vem primeiro, seguido das variações. Aqui não. Eu terminava a minha variação e imediatamente tinha de entrar no pas de deux. Mas ele sabia o que fazia. A forma como coreografava, como brincava com a música, fazia com que conseguíssemos continuar.” Alonso também descreveu como Balanchine via a relação entre música e dança: “Uma vez ele me disse: para ele, ele não via o dançarino dançando, ele via as notas da música dançando.”

Essa consciência musical marcou profundamente Alonso. Embora sempre tivesse sido uma bailarina musical, ela admitia: “Com ele, tornei-me consciente. Eu dançava com a música, mas não tinha consciência do valor disso. Ele me fez sentir como cada passo correspondia a cada nota, como se a frase musical fosse o verdadeiro motor da coreografia.” Alonso até relatava como associava seus movimentos a instrumentos específicos: se ouvia o trombone, seu braço ganhava peso e impacto; se era violino, buscava fluidez contínua.


Com Youskevitch, ela formou uma das parcerias mais célebres da história do balé. Não era apenas química de palco: era trabalho incessante. “Mesmo em turnês, no café, no trem ou no hotel, estávamos sempre falando sobre como melhorar. Tentávamos um detalhe de outro jeito, ajustávamos o olhar, a diagonal, a relação com o público. Nunca estávamos satisfeitos.” Esse diálogo constante transformou Theme and Variations em algo maior que a soma de suas partes — um encontro entre coreógrafo, intérpretes e música, todos dispostos a ir além.

Sobre a recepção crítica, Alonso lembrava com ironia que Lincoln Kirstein, parceiro histórico de Balanchine, teria dito que não se tratava de um “trabalho de primeira classe”. Ao que ela respondeu: “Talvez ele estivesse mal-humorado. Ele era muito inteligente, sabia quando algo era bom, e esse balé era bom.”

O tempo provou seu julgamento. Hoje, Theme and Variations é visto não apenas como uma peça difícil, mas como uma obra-prima do século 20. Alonso mesma justificava sua preservação: “Acho que é um masterpiece. E não acho que só quem viu na época ou quem vê agora tem direito de conhecê-lo. O futuro também tem o direito de vê-lo.”

Ao longo das décadas, intérpretes como Gelsey Kirkland, Natalia Makarova, Paloma Herrera e Darci Kistler ofereceram suas próprias variações sobre esse tema da grandeza. Todas dançaram os mesmos passos; todas enfrentaram a mesma provação. Mas o padrão continua sendo Alonso — não porque fosse impecável, mas porque transformava a imperfeição em transcendência. Dançar Theme and Variations é sempre medir-se contra aquela primeira aparição de majestade impossível.

Embora tenha nascido no ABT, o balé há muito ultrapassou fronteiras nacionais. Pertence hoje ao New York City Ballet, ao Royal Ballet, à Ópera de Paris, ao Mariinsky — a qualquer palco disposto a enfrentar sua pureza impossível. É um clássico global, um dos trabalhos mais duradouros de Balanchine, e um dos poucos no cânone neoclássico que funciona como homenagem e crítica ao mesmo tempo. Homenagem, porque reverencia Petipa e o mundo do balé imperial. Crítica, porque elimina o excesso narrativo e ornamental daquela tradição, revelando apenas a arquitetura esquelética da própria dança.

Assistir a Theme and Variations hoje é presenciar um paradoxo. É um balé assombrado pelo passado, mas que insiste no futuro. Recria a grandeza de um império desaparecido, mas afirma que tal grandeza pode renascer na América, em corpos modernos, em novas gerações. É uma obra que revela a essência do gênio de Balanchine: a capacidade de transformar memória em geometria, história em abstração, música em dança tão exata que parece inevitável.

Mais de setenta anos depois, o balé não envelheceu. Ao contrário, tornou-se mais austero, mais impossível, mais luminoso. Continua exigindo de cada intérprete um confronto com a tradição e consigo mesma, uma disposição para entrar na história e ao mesmo tempo transcendê-la. Chamar Theme and Variations de balé talvez seja insuficiente. Ele é um sonho de império, uma prova de fé e um manifesto para o futuro da dança.


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