É quase inverossímil escrever estas linhas: Dwayne “The Rock” Johnson, o rosto mais associado a blockbusters de ação, comédias leves e à cultura do entretenimento pop, pode finalmente ser indicado ao Oscar como Melhor Ator Dramático. O feito não seria apenas surpreendente — seria revolucionário para a imagem de um artista que passou anos sendo visto como “a estrela carismática”, mas nunca como um intérprete de fôlego. E a ironia é que essa consagração pode vir justamente ao revisitar suas origens: um papel que o conecta de volta ao universo das lutas, mas em uma chave radicalmente oposta ao espetáculo musculoso que moldou sua persona.
O peso real de Mark Kerr
O filme de Benny Safdie, The Smashing Machine, coloca Johnson na pele de Mark Kerr, uma das figuras mais fascinantes e trágicas da história do MMA. Kerr foi um lutador lendário nos anos 1990, campeão invicto no Vale Tudo e no UFC, apelidado de “The Smashing Machine” pela brutalidade com que dominava os oponentes. No auge, parecia indestrutível: músculos esculpidos, força descomunal, uma promessa de permanência no panteão do esporte. Mas, como tantas figuras marcadas pela glória rápida, Kerr também carregava um abismo.
Atrás das câmeras e dos ringues, sua vida era devastada por vício em opioides, episódios de depressão e um relacionamento instável com Dawn Staples, que oscilava entre amor intenso e ruína emocional. Kerr chegou a ser protagonista de um documentário em 2002 (da HBO), onde sua luta contra as drogas e o vazio existencial foi registrada de forma crua. Ali já estava claro que sua história era maior do que o esporte: era uma narrativa sobre o peso de carregar no corpo a glória pública e, na intimidade, a derrota silenciosa.


O mergulho de Johnson
Para Johnson, interpretar Kerr exigiu algo que nunca tinha feito antes: apagar o mito de The Rock para dar lugar a um homem quebrado. Foi necessária uma transformação física e emocional. Ele trabalhou com o mestre das próteses Kazu Hiro (vencedor do Oscar por O Destino de uma Nação e O Escândalo), que moldou não apenas o rosto, mas detalhes da estrutura facial para que Johnson desaparecesse sob a pele de Kerr. As expressões endurecidas pelo vício, as marcas da dor física, a vulnerabilidade que rompe o verniz da invencibilidade — tudo foi construído com precisão cirúrgica.
Mas a maior transformação foi interior. Johnson, conhecido por seu controle absoluto da própria imagem pública (sempre carismático, forte, positivo, “bigger than life”), aceitou desmoronar em cena. Deixou-se filmar frágil, chorando, perdido, desorientado, incapaz de esconder a dependência química e a ruína íntima de Kerr. Em Veneza, onde o filme estreou, críticos falaram em “revelação” e compararam sua entrega às performances de Mickey Rourke em The Wrestler e Brendan Fraser em The Whale. Ambos atores que, em momentos inesperados, encontraram no drama a chance de renascer artisticamente.
O círculo completo
Há, nessa escolha de papel, um simbolismo poderoso. Johnson nunca foi lutador de MMA, mas seu DNA é de ringue. Neto de Peter Maivia, filho de Rocky Johnson, ele cresceu no universo do wrestling profissional e foi em cima de um tablado que construiu o personagem que o tornaria globalmente famoso: The Rock. E foi com o carisma desse gladiador teatral que entrou em Hollywood, abrindo caminho para duas décadas de ação, comédia e franquias bilionárias.

Agora, ao interpretar um lutador real, mas marcado por feridas invisíveis, Johnson faz um movimento de catharsis pessoal. Sai do espetáculo roteirizado do wrestling para enfrentar a verdade nua de um atleta que quase se destruiu. É, de fato, um “full circle”: o homem que encarnava a invencibilidade dá vida à fragilidade que, por anos, se escondeu sob músculos e bravatas.
A recepção crítica
O impacto foi imediato. Em Veneza, o filme foi ovacionado por 15 minutos, com Johnson às lágrimas. A Variety destacou que “o ator mais improvável entregou a performance mais inesperada do ano”. A GQ chamou The Smashing Machine de “o primeiro grande filme de Dwayne Johnson”, enquanto a People falou em “intensidade crua e vulnerabilidade rara”. O Washington Post foi direto: Johnson não apenas se transforma em Mark Kerr, mas se redescobre como ator. Há um consenso entre críticos: ele é, sim, um forte candidato ao Oscar.
O futuro que se abre
Para Johnson, a indicação (ou mesmo a vitória) significaria romper com décadas de percepção limitada de sua arte. Ele sempre foi reconhecido como estrela, raramente como intérprete. Agora, se posiciona ao lado de colegas que souberam reinventar-se em papéis de densidade dramática. E para Hollywood, esse movimento é igualmente simbólico: em tempos de crise de bilheteria e transição de gêneros, ver um astro de ação encontrar profundidade pode inspirar novas rotas de carreira para outros.

O homem por trás do mito
The Smashing Machine não é apenas um drama esportivo. É um retrato humano — e um teste de fogo para Dwayne Johnson. O astro que nasceu no ringue, dominou o cinema de ação e as comédias familiares, agora surge disposto a expor vulnerabilidade, dor e contradição.
Se o Oscar é, de fato, um reconhecimento da coragem de se despir da persona para revelar a verdade, Johnson acaba de entrar pela primeira vez na disputa com legitimidade. E talvez seja essa ironia — um lutador fictício dando vida ao lutador real que perdeu a batalha contra si mesmo — que torne sua performance tão inesquecível.
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