Terminei a Parte 2 da 2ª temporada de Wandinhacom aquela sensação agridoce de quem foi fisgada por tudo que a série tem de melhor — e, ao mesmo tempo, foi puxada para fora do transe pelos vícios de uma produção que se acostumou a correr atrás do próprio rabo. Meu encantamento continua, sobretudo pela trilha sonora e pelas interpretações (todos em sintonia fina), pela participação de Lady Gaga — tanto musicalmente quanto em cena —, pelo deleite visual dos efeitos “super Tim Burton” e, claro, pela reviravolta que redesenha o mito da Mãozinha. Mas a experiência também escorrega no excesso: subtramas demais, personagens demais, cliffhangers em série e a escolha equivocada de dividir a temporada em duas partes, o que quebra ritmo e dilui tensão.

Começo pelo que acerta em cheio. A música volta a ser um motor narrativo e emocional. A série entende que Wandinha também é memória auditiva: as escolhas de faixa, os acentos góticos, o diálogo com a cultura pop. A aparição de Lady Gaga, com canção nova e uma piscadela que conversa diretamente com a viralização da primeira temporada, é um gesto consciente de diálogo com o público — calculado, sim, mas eficaz. Quando a série deixa a coreografia assumir a cena (aqui, com Emma Myers), ela encontra uma chave divertida, quase farsesca, que combina com o universo dos Addams sem trair o espírito original. É quando o artifício vira estilo e não truque.
O elenco sustenta esse mundo com convicção. Jenna Ortega faz o que parece impossível: afina ainda mais sua Wandinha, agora com fendas de vulnerabilidade que emergem especialmente na relação com Morticia. Emma Myers arma, com delicadeza, a curva trágica de Enid: de “tardia” no lobo interior a alfa que pode não voltar à forma humana — uma ideia poderosa porque ressignifica pertencimento como risco, liderança como solidão. Gwendoline Christie, mesmo do “além”, injeta humor seco e melancolia; Steve Buscemi encontra a nota certa do excêntrico que comenta o absurdo vivendo nele; Joanna Lumley mastiga cada cena como Hester, metade abraço, metade punhal. E a pequena joia chamada Evie Templeton (Agnes) cresce do cômico ao perturbador com uma precisão rara.

Agora, os spoilers — porque são eles que ajudam a explicar por que, mesmo tropeçando, a temporada consegue ser memorável. O final revela que a tia Ophelia está viva, confinada no porão de Grandmama Hester, rabiscando “Wednesday must die” na parede: imagem forte, promessa de conflito familiar com DNA Addams e um gancho que, se bem conduzido, pode explodir na 3ª temporada. O diário de Ophelia, que Morticia entrega à filha, não é só dispositivo de trama; é símbolo de trégua, de confiança, de um reconhecimento da emancipação de Wednesday — e é por essa costura emocional que a série respira.
O outro ponto alto é a origem da Mãozinha: descobrir que Thing é a mão de Isaac Night transforma um gimmick histórico em tragédia doméstica. O anagrama “Thing”/“Night” é um bom truque, mas o que importa é a cena em que a mão escolhe sua família — e arranca o coração mecânico de seu antigo dono. É camp com sentimento: o nonsense encontra sentido, e o grotesco vira afeto. Nesses momentos, Wednesday parece escrita com caneta-tinteiro, não em sala de roteiristas apressada.

Do lado da ação, a máquina de Isaac que promete “curar” Hyde à custa da vida de quem se ama é um melodrama assumido — e funciona. Ver Tyler matar, sem querer, a própria mãe em forma Hyde é cruel e coerente com a lógica da série: poderes como amplificadores de dor. O detalhe mais honesto, porém, está na escolha impulsiva de Wandinha de não matar Tyler quando teria chance: ela “erra” — e isso abre uma fenda ética e emocional que, se a série tiver coragem, pode render maturidade na próxima temporada. E, sim, o fim do diretor Dort, esmagado e petrificado após se incendiar por conta própria, devolve a farsa ao seu lugar: vilania que se pune sozinha, sem que ninguém “vire assassino” por acidente de roteiro.
E Enid? A decisão de se transformar em alfa para salvar Wandinha, aceitando o risco de ficar presa no corpo de loba e virar caça — até dos seus —, é o gesto mais bonito da temporada. É aí que a série lembra do que sempre foi seu coração: amizade feminina, irmandade eletiva, o pacto silencioso entre duas párias que se reconhecem mesmo quando o mundo inteiro as quer em jaulas diferentes. Que a Parte 2 a arraste para o norte gelado, em fuga, é coerente; que a terceira temporada trate esse exílio como jornada (e não como mais um “arco lateral”), é o que eu espero.

Dito isso, o que emperra? A mesma ânsia de multiplicar pratos no ar que já tinha dado sinais na Parte 1. São mistérios e cultos (o Morning Song que vampiriza a Bianca e some), romances que viram “losangos” sem faísca, corredores abarrotados sem a contrapartida de… aulas. A série mal parece interessada no cenário escolar que a vendia como diferencial. Nunca pensei que diria isso sobre Wandinha, mas falta “rotina” para que o extraordinário seja sentido como extraordinário. Quando tudo é evento, nada é evento.
E há, sim, um problema de formato que é menos artístico e mais industrial: a escolha da Netflix de fatiar a temporada em duas partes. Não é só uma questão de “modelo de lançamento”; é o efeito direto na nossa relação com a obra. Wandinha depende de atmosfera, continuidade emocional, crescendo de suspense. As pausas alongadas quebram o verniz, confundem o compasso e jogam contra a própria experiência que a série quer nos entregar. Já passou da hora de admitir que soltar tudo de uma vez “porque engaja no primeiro fim de semana” não é estratégia — é uma muleta que cobra seu preço em ritmo e memória do espectador.

Também pesa o excesso de personagens. Quando a série acerta ao dar espaço a Ortega e Myers — e, no episódio da troca de corpos, acerta como nunca —, ela lembra que é sobre elas. Separe-as demais, pulverize o foco em CGI que copia sem o artesanato o charme das velhas monstruosidades burtonianas, e a mágica se desfaz. É curioso: o episódio que melhor equilibra “problema da semana” e arco emocional (a body swap hour) vem dos próprios criadores de Smallville, veteranos nesse tipo de estrutura. O caminho está ali, claro como um vitral gótico ao sol.
Então, no meu placar íntimo:
O que gostei
- A trilha sonora como dramaturgia (e a piscadela pop que conversa com o fenômeno da 1ª temporada).
- As interpretações — de Ortega e Myers aos coadjuvantes (Buscemi, Christie, Lumley, Templeton).
- A surpresa de Lady Gaga (em música e cameo) — um gesto calculado, sim, mas vibrante.
- A história da Mãozinha, que dá profundidade a um ícone e entrega um clímax emocional memorável.
- Os efeitos “super Tim Burton”, quando abraçam o camp e o artesanal, em vez do CGI plastificado.

O que não gostei
- Subtramas demais e reviravoltas dramáticas exageradas, que drenam foco e enfraquecem a espinha dorsal (Wednesday & Enid).
- Personagens em excesso, o que transforma arcos promissores em notas de rodapé.
- O fatiamento em duas partes, que quebra o ritmo de um drama que precisava de continuidade e densidade para manter o torniquete do suspense apertado.
No fim, Wandinha continua sendo uma dessas produções em que a forma importa tanto quanto o conteúdo: é um desenho de sombra, uma ironia coreografada, uma gargalhada fúnebre. Quando a série decide confiar em suas duas protagonistas e no laço que as liga, ela encontra sua pulsação mais forte. Se a terceira temporada aceitar essa vocação — menos dispersão, mais caráter; menos ruído viral, mais música interna —, o “capítulo mais sombrio” prometido pode, enfim, ser também o mais luminoso em termos de direção artística e afetiva. Até lá, fico com o eco de uma mão correndo pelo chão — e escolhendo, sem hesitar, de que lado ela quer bater palmas.
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