Eu tenho um problema com esses documentários da Netflix. Unknown Number: The High School Catfish é o mais recente exemplo. Durante mais de 40 minutos, acompanhamos entrevistas, depoimentos e reconstruções que nos apresentam uma mãe aparentemente solidária, preocupada e envolvida, como se fosse apenas mais uma vítima do drama da filha. Vemos Kendra Licari falar sobre o caso com naturalidade, como se não tivesse nenhuma relação direta com a perseguição que devastava a vida de Lauryn. É só então que vem a virada: a própria Kendra era a autora das mensagens anônimas, a responsável por um assédio digital que durou mais de um ano.
Sim, como construção narrativa, o impacto é enorme. A surpresa funciona como um plot twist de cinema. Mas eu não consigo evitar a reflexão sobre a ética dessa escolha. Até que ponto manipular a ordem dos fatos para criar efeito dramático não transforma a dor real em espetáculo? É claro que todos têm o direito de contar sua versão, mas dar espaço a alguém envolvido em um crime para falar livremente durante tanto tempo, sem o contraponto imediato dos investigadores, pode soar como cumplicidade com a encenação. Esse é um dilema recorrente nos “true crimes” da Netflix: até onde vai a investigação jornalística e onde começa o entretenimento?

Quando olhamos para os fatos, o caso em si é ainda mais perturbador do que o documentário sugere. Em outubro de 2020, Lauryn, de apenas 13 anos, recebeu a primeira mensagem de um número desconhecido. Parecia fofoca escolar: dizia que ela não havia sido convidada para uma festa de Halloween e que seu namorado, Owen, estava interessado em outra menina. Só que aquilo não parou por aí. Nos dias seguintes, novos recados chegaram, mais agressivos, insultando sua aparência, atacando sua autoestima. Logo, o conteúdo se transformou em ameaças explícitas, mensagens vulgares e até sugestões de suicídio.
O assédio se tornou sufocante. Chegavam a ser cinquenta mensagens por dia, enviadas por aplicativos que mascaravam o número de origem. E não era apenas Lauryn o alvo: Owen também passou a ser atacado. Durante mais de quinze meses, o casal adolescente viveu sob cerco, sem conseguir entender quem poderia estar por trás daquela campanha de ódio.
A primeira reação foi a mais óbvia: culpar colegas de escola. Inclusive uma amiga próxima, Khloe Wilson, chegou a ser investigada, até que as provas se mostraram insuficientes. A polícia local não conseguiu avançar porque os aplicativos usados para enviar as mensagens dificultavam o rastreamento. Foi só quando o FBI entrou em cena que a investigação tomou outro rumo.
Peritos analisaram dados de IP, rastros digitais e padrões linguísticos. Aos poucos, descartaram os adolescentes como suspeitos. Até que, em 2022, a revelação surgiu: as mensagens vinham da rede e dos dispositivos de Kendra Licari, a mãe de Lauryn. A mulher que aparecia diante das câmeras como uma mãe abalada era, na verdade, a responsável por todo o tormento.
A descoberta foi devastadora. Kendra era vista na comunidade como uma mãe presente, inclusive treinava o time de basquete infantil da escola. Ninguém poderia imaginar que fosse ela a se dedicar, noite após noite, a criar números falsos e perfis mascarados apenas para ferir a própria filha. O motivo até hoje permanece nebuloso. No documentário, ela fala de traumas pessoais, de um estupro sofrido aos 17 anos, e de uma ansiedade profunda ao ver a filha se aproximar da mesma idade. Alguns especialistas cogitam algo próximo da síndrome de Munchausen por procuração, mas nunca houve diagnóstico médico formal.

O fato é que, em dezembro de 2022, Kendra foi presa. Em 2023, declarou-se culpada de dois crimes de perseguição contra menores e de uso indevido de dispositivos eletrônicos. A sentença estipulou uma pena entre 19 meses e 5 anos de prisão. Ela acabou cumprindo pouco mais de um ano e meio, sendo libertada em agosto de 2024. Hoje, está em liberdade condicional, proibida de ter contato com Lauryn e obrigada a seguir acompanhamento psicológico até pelo menos 2026.
A vida da família, claro, nunca voltou ao normal. O pai de Lauryn, Shawn Licari, se divorciou de Kendra e assumiu a custódia integral da filha. Lauryn, agora com 18 anos, rompeu os laços com a mãe, mas já falou publicamente sobre a possibilidade, ainda distante, de uma reconciliação. Ela expressa a vontade de estudar criminologia, talvez como forma de transformar a dor em propósito. Owen seguiu com seus estudos e está na faculdade. Já Khloe, que foi injustamente investigada, tenta reconstruir sua vida depois de ter tido a reputação manchada por um crime que nunca cometeu.
A comunidade de Beal City, tão pequena e unida, ficou marcada por esse escândalo. Mais do que a violência do cyberbullying, o choque maior foi descobrir que a ameaça vinha de dentro de casa. A partir desse caso, escolas e famílias passaram a discutir com mais seriedade a segurança digital, e a cidade virou símbolo de como o abuso pode se disfarçar em formas inimagináveis.
E é por isso que, quando vejo Unknown Number, não consigo apenas me prender à surpresa da narrativa. O que me incomoda é justamente como a Netflix se apropria dessa reviravolta, retardando a revelação para criar o efeito de choque. Funciona como entretenimento, mas me parece injusto com a realidade: esse não é apenas um enredo de suspense, mas a vida real de uma adolescente traída pela própria mãe. E esse, para mim, é o verdadeiro horror da história.
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