A Tensão Clássica entre Nora e Sogra com reviravolta trágica

Desde que o cinema existe, a tensão entre nora e sogra é um dos dramas mais recorrentes — e por isso tão fascinante. É uma relação que atravessa culturas, épocas e classes sociais, carregada de expectativas, disputas de poder e choque de gerações. A sogra é a guardiã do status quo familiar, a nora a força de renovação que ameaça o equilíbrio doméstico. De A Sogra (Monster-in-Law, 2005), com Jane Fonda e Jennifer Lopez, até a inesquecível Marie Barone de Everybody Loves Raymond, passando pelas disputas refinadas de Downton Abbey e pelos melodramas de novelas asiáticas, essa batalha sempre gerou histórias cômicas, trágicas ou até grotescas — e raramente deixou de prender o público.

A Namorada Ideal (The Girlfriend), minissérie da Prime Video baseada no livro de Michelle Frances, pega esse tropo e o transforma em um thriller elegante e maldoso, com gosto de guilty pleasure. Logo na cena inicial, ao som de um cover sombrio de “Everybody Wants to Rule the World”, na voz de Lorde, ouvimos portas batendo, vozes gritando e alguém implorando: “Laura, largue a faca!” — e entendemos que estamos prestes a assistir ao embate definitivo entre duas mulheres que amam o mesmo homem de maneiras opostas.

A série é dirigida e estrelada por Robin Wright, que interpreta Laura Sanderson, uma bem-sucedida galerista londrina que tem uma relação de proximidade sufocante com o filho Daniel (Laurie Davidson). Ele é doce, dedicado, e a vida dela gira em torno dele de um jeito que já seria suficiente para causar incômodo, mesmo antes de Cherry Laine (Olivia Cooke) entrar na história. Cherry é uma corretora de imóveis de origem humilde, determinada a subir na vida, que chega para desestabilizar o equilíbrio perfeito da casa Sanderson — e, aos olhos de Laura, transformar tudo em ameaça.

O trunfo da série está na estrutura narrativa que apresenta os acontecimentos duas vezes: primeiro sob o ponto de vista de Laura, depois sob o de Cherry. Em alguns momentos, na ordem inversa. Esse recurso não apenas adiciona tensão como obriga o público a desconfiar de ambas. Laura parece excessivamente protetora, às vezes beirando o patológico, e Cherry pode ser sedutora e manipuladora, mas também genuinamente apaixonada. É um jogo de duas verdades — a história constrói um quebra-cabeça no qual cada mulher omite peças importantes, e apenas perto do final o segredo de Cherry é revelado por inteiro. A série nos convida a analisar não apenas quem está mentindo, mas por que mente, e a perceber que o centro do conflito não é apenas Cherry, mas a relação simbiótica e mal resolvida entre Daniel e Laura. Como o próprio Howard, marido de Laura, verbaliza em um momento crucial: o medo de Laura é ser substituída por Cherry. E esse medo alimenta cada gesto de proteção, cada invasão de privacidade, cada explosão de paranoia.

Mas há também a outra face: Cherry não é apenas “excessiva” — há nela traços de psicopatia ou sociopatia que a tornam, sim, potencialmente perigosa. Sua obsessão com o ex, os atos impulsivos e vingativos, e a forma como consegue mascarar suas intenções quando conveniente revelam alguém capaz de ir muito além da ousadia social ou do drama romântico. E, ao mesmo tempo, ela parece verdadeiramente apaixonada por Daniel, o que impede que o público a reduza a uma mera golpista. O fato de Cherry gostar da boa vida que Daniel proporciona — das roupas, das viagens, da entrada no mundo dos ricos — nunca é mostrado como sendo tudo que ela quer dele, mas sim como algo que se soma ao sentimento genuíno. Essa ambivalência é o que torna a personagem fascinante e perigosa: ela não quer só Daniel ou só o estilo de vida, quer os dois, e fará qualquer coisa para não perder nenhum.

Ao contrário de muitos thrillers do gênero, The Girlfriend não quer que o público escolha um lado cedo demais — quer que o espectador oscile de posição, desconfortável, e continue assistindo para entender quem, afinal, está certa. É nesse espaço cinzento que Robin Wright e Olivia Cooke voam: Wright, tornando Laura crível mesmo em seus rompantes de paranoia; Cooke, dando a Cherry um carisma magnético que nos mantém divididos entre empatia e medo.

Críticos têm ressaltado como Wright ancora Laura com sua gravidade característica, tornando críveis até seus atos mais irracionais — e como Cooke entrega uma Cherry cheia de camadas, ambiciosa e magnética, nunca apenas “a namorada louca”. Há um componente de crítica social na história, que explora as divisões de classe: o dinheiro que dá a Daniel e Laura uma vida sem esforço é o mesmo que desperta ansiedade e desejo em Cherry. O roteiro é sagaz ao brincar com as nossas simpatias — é fácil torcer para que Cherry vença quando vemos Laura rir do seu vestido “um pouco vulgar” ou do seu sotaque, mas logo a série nos lembra que Cherry também mente, manipula e invade limites.

The Girlfriend não tenta ser um estudo psicológico profundo nem um drama social refinado como Big Little Lies (onde a guerra entre a sogra vivida por Meryl Streep e a nora interpretada por Nicole Kidman acrescenta medo à história). Ela se assume como uma história de intrigas e exageros, mais próxima de The Hunting Wives do que de qualquer prestígio “sério”. Há cenas explícitas de Cherry transgredindo, diálogos que beiram o brega, e um tom deliciosamente maldoso que impede a série de ficar pesada demais. Em vez de buscar realismo absoluto, ela convida o espectador a se divertir com o absurdo — com os jantares que terminam em lágrimas, os encontros cheios de tensão passivo-agressiva e o clímax de faca na mão.

No fundo, The Girlfriend é herdeira de um gênero inteiro, mas com o frescor de um thriller contemporâneo. Se antes a sogra era a caricatura da controladora e a nora apenas a vítima, aqui as duas são retratadas como mulheres cheias de contradições, movidas por medo, desejo e necessidade de pertencimento. É um duelo psicológico que não pede ao público para encontrar heroínas ou vilãs, mas para mergulhar na batalha e aceitar o desconforto.

E talvez seja por isso que funcione tão bem: porque transforma um conflito arquetípico — mãe e nora, tradição e ruptura, amor e posse — em espetáculo, com sangue, ironia e uma boa dose de glamour sombrio. Se você não leu o livro, mas prestou atenção aos detalhes do roteiro extremamente amarrado da série, não há grandes surpresas na trama: sabemos para onde tudo caminha desde a primeira cena. Mas The Girlfriend não se importa: o prazer está justamente em acompanhar cada passo dessa guerra íntima e ver até onde essas duas mulheres estão dispostas a ir para não perder o homem que as une — e que, no fim, é apenas o coadjuvante de sua própria história.


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