May Welland é o retrato mais refinado — e, por isso mesmo, mais inquietante — do que Edith Wharton chama de “boa educação” em Nova York do fim do século 19: um conjunto de gestos, silêncios e convenções que, sob aparência de pureza, administra destinos. Ela é flor de estufa e jardineira ao mesmo tempo. Criada para ser o ideal da moça “de família”, encarna a brancura que sua sociedade cultua — a pele translúcida, a discrição como joia, os lírios-do-vale como perfume de assinatura — e aprende, com devastadora naturalidade, a transformar esse ideal em instrumento. Não é apenas a noiva de primavera que seu nome anuncia; é May quem entende, antes de Newland, que liberdade ali é um verbo que se conjuga em privado e se desmente em público. O romance inteiro é a coreografia desse aprendizado: de um lado, a “inocência” como mito fundacional; de outro, a inteligência social que garante que esse mito não desmorone.
Mas para além da superfície social, a pergunta que fica é: o que May sente? E é aqui que Edith Wharton abre a camada mais íntima de sua personagem.

É tentador ler May como ingenuidade ou, no extremo oposto, como vilania gelada. Mas Wharton não escreve caricaturas; escreve sistemas. May é, ao mesmo tempo, produto e agente desse sistema. O que parece candura é uma linguagem — e uma língua materna. Seu repertório é o da contenção: falar pelo que não se diz, manter a ordem por antecipação, ocupar os vazios com rituais.
May amava Newland?
Sim, ela o amava — mas no vocabulário afetivo que lhe foi ensinado. O amor de May não é febril como o de Newland por Ellen, nem transgressor; é um amor que se confunde com lealdade ao projeto de vida que os dois representam juntos. Ela quer ser esposa e mãe no molde perfeito, e quer que Newland ocupe seu papel de marido com igual perfeição. É um amor que deseja estabilidade, não explosão. Quando May antecipa o casamento, quando procura agradar e cumprir cada expectativa, não é só estratégia — é também desejo genuíno de realizar esse ideal de “felicidade conjugal”.
Wharton sugere que May, à sua maneira, sofre com a oscilação de Newland. Mas ela não escolhe a rota da confrontação. Sua forma de amar é manter tudo no eixo — mesmo que, para isso, precise agir silenciosamente para neutralizar ameaças ao que construiu. Em outras palavras, ela ama, mas esse amor é inseparável da preservação do sistema.
Ela mentiu para Ellen sobre a gravidez?
Aqui está uma das passagens mais debatidas do livro — e uma das mais brilhantes. Quando May conta a Ellen que “acaba de descobrir” que está grávida, Wharton nunca confirma ao leitor se isso é verdade naquele exato momento ou se May antecipa o anúncio de algo que ainda não está confirmado. A escolha de palavras de Wharton — e o fato de o romance dar a cena sob a perspectiva de Newland — cria uma névoa proposital.
O que sabemos é que o gesto tem efeito imediato: Ellen decide ir embora. Ou seja, a intenção de May é clara — afastar a rival de uma forma que ninguém possa censurar. É possível ler isso como uma “mentira estratégica”; também é possível ler como um uso habilidoso de uma verdade potencial (porque de fato ela engravida em seguida). O que interessa a Wharton não é a precisão clínica da informação, mas o cálculo social que está em jogo: May sabe que a simples ideia da gravidez é suficiente para transformar um caso amoroso em algo impensável.

O que isso diz sobre May?
Essa cena é o auge da sua inteligência social. Para alguns leitores, é prova de manipulação; para outros, é um ato desesperado de preservação de seu casamento. Ambas as leituras são legítimas. O mais importante é que Wharton não a reduz a uma “vilã” — ela mostra como May usa as armas que tem à disposição: sua posição, sua reputação e o peso do futuro filho.
No fundo, é um gesto de amor, sim — mas de um amor que se expressa pelo controle. May não quer destruir Newland, quer mantê-lo dentro do pacto que fizeram. Se Ellen representa a possibilidade de ruptura, May representa o mundo que escolheu continuar existindo. É justamente por essa capacidade de agir de forma tão silenciosa quanto certeira que a metáfora de May como Diana, a arqueira, ganha força.
Ao comunicar a Ellen — antes de falar com o próprio marido — a “boa nova” de uma possível gravidez, move outra peça silenciosa no tabuleiro. A cena, tantas vezes lida como crueldade, é, na verdade, um estudo de sobrevivência feminina num mundo que não admite conflitos explícitos. May opera com as ferramentas disponíveis: tempo, rumor, expectativa social, maternidade. Quem chama isso de manipulação esquece que, para mulheres como ela, não havia porta de saída pela frontalidade; havia apenas o labirinto dos códigos.

O grande erro de Newland é confundir silêncio com vazio. Ele projeta na esposa a fantasia do não-saber: “se ela soubesse, sofreria; como não sabe, é feliz”. Wharton desmonta essa ilusão no epílogo, quando o filho adulto revela que May sempre soube — ou, mais precisamente, sempre intuía — aquilo que o marido só ousou desejar em pensamento. O gesto final de May, já à beira da morte, é de uma ambivalência típica das mulheres de sua classe: uma espécie de benção invertida. Ela confia ter sido “protegida” por um homem que abriu mão do que mais queria; e, ao mesmo tempo, sela a narrativa de Newland de uma vez por todas. É um ato de amor? De posse? De fidelidade à tribo? É tudo isso ao mesmo tempo. A elegância de Wharton está em nos deixar dentro dessa contradição sem resolver o dilema.
Comparada a Ellen, com sua cor estrangeira, sua moral porosa e sua recusa a fazer de conta, May é o padrão americano levado ao grau máximo de polimento. Ellen representa o arejamento irregular do mundo; May, a estabilidade lisa da sala de visitas. Não é casual que as flores que cercam cada uma ecoem essas qualidades: em May, o branco compacto, quase sem cheiro, da flor nupcial; em Ellen, cores e formas mais francas, um perfume que toma o ambiente. Newland, que acredita preferir o jardim mais selvagem, passa a vida dentro da estufa, convencido de que permanecer é um sacrifício heroico. A ironia — e Wharton vive de ironias delicadas — é que quem verdadeiramente age, quem realmente decide a vida de todos, é a pessoa em quem o romance investe menos cor e mais geometria.

Essa geometria não é fria. May tem uma ética — é apenas uma ética ortogonal ao desejo. Dentro de seu horizonte, ela cuida: dos pais, do marido, da reputação, da continuidade. Para isso, aceita a tradição como eixo e recalca o imponderável. Também por isso, a potência de May se dá no registro do “como se”: como se não soubesse, como se não doesse, como se a alegria conjugal fosse um tecido sem remendos. O custo dessa performance é o que torna o livro trágico: May não é feliz no sentido romântico; é eficaz. E, na contabilidade daquela sociedade, eficácia e felicidade se confundem.
O romance sugere que as mulheres encontram, nos interstícios do protocolo, micro-avenidas de poder. Wharton mapeia essas passagens como quem desenha uma planta baixa: o almoço com as primas, o bilhete no momento certo, a visita que acontece (ou não acontece), o anúncio feito primeiro a quem importa mediaticamente, não afetivamente. May domina o calendário como outros dominam o capital. Sua suposta passividade é uma versão feminina do “deal-making”: a arte de obter os resultados esperados sem que ninguém possa apontar para a cena do crime. Se a sociedade é o tribunal, May é sua promotora e sua liturgista — e às vezes, discretamente, também sua beneficiária.
Em termos literários, ela cumpre uma função estrutural rara: é antagonista sem maldade, motor do conflito sem extravagância. Em May, Wharton expõe a máquina do costume: o poder que não se exibe, a violência que se dá pela gentileza, a censura que se pronuncia como conselho. Quando a narrativa, décadas depois, oferece a Newland a chance de subir as escadas e rever Ellen, o fato de ele ficar na rua, olhando a janela fechada, sela não apenas o destino de um homem, mas a vitória de uma estética social. Esse homem foi educado para amar o que não se toca. E quem garantiu que sua educação não fosse vencida pelo impulso foi a mulher que pareceu, o tempo todo, não estar jogando.


Nas adaptações, essa camada dupla de May — superfície cintilante, inteligência estratégica — costuma receber leituras distintas. Winona Ryder, no filme de Scorsese, a interpreta como porcelana com arestas: há doçura, mas também a nitidez de quem mede a sala ao entrar. Essa ambiguidade é crucial para que May não se reduza ao arquétipo da “esposa enganada” ou da “anjo doméstica”. O interesse de Wharton está justamente em mostrar que o anjo doméstico é, por definição, a estrategista mais eficiente da casa. Em palco ou tela, quando a atriz encontra o ponto em que o sorriso ilumina e delimita ao mesmo tempo, entendemos o alcance da personagem: o brilho é luz e é cerca.
Ler May hoje, na chave contemporânea de termos como “gaslighting” ou “manipulação”, é perder metade da precisão de Wharton e ganhar apenas uma sensação de conforto moral. O que há em May não é perversidade; é adesão. E essa adesão é, ela mesma, uma forma de virtude dentro do código em vigor. Isso não a inocenta — mas a humaniza. Ela escolhe o que foi treinada para escolher; e, ao escolher, preserva a ordem que a preserva. Ellen paga o preço do arejamento; May, o preço da estabilidade. Não há vencedoras, apenas uma cidade que continua funcionando, lustrosa, graças às mãos invisíveis de mulheres como ela.

No fim, May Welland é a chave do título de Wharton. A “idade da inocência” não é um período em que as pessoas eram puras; é o tempo em que a pureza foi o nome mais eficaz para uma política de costumes. May é a alta sacerdotisa desse culto: oferece flores brancas, pronuncia palavras impecáveis, mantém tudo no lugar. Seu triunfo é silencioso, como a maior parte dos triunfos que realmente importam para a manutenção de um mundo. Seu fracasso, se quisermos chamá-lo assim, é que para sustentar essa ordem ela precisa renunciar ao romance como experiência — e obrigar seu marido a renunciar com ela. Entre a paixão e o decoro, May escolhe o decoro. Entre o gesto e a regra, escolhe a regra. Entre ser pessoa e ser função, aprende a ser ambas. E é justamente nesse equilíbrio impalpável que sua grandeza — e a crítica de Wharton — se revelam.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
