House of Guinness: Entre a Realidade da Fortuna e o Peso do Drama

Desde o anúncio de House of Guinness, havia uma grande expectativa. Mais uma série de época com narrativa moderna, inspirada em uma história real — ainda que com algumas liberdades criativas — e criada por Steven Knight, o mesmo responsável por Peaky Blinders, ela já nasceu com selo de aposta certa. O elenco de jovens atores ingleses de prestígio e o roteiro afiado prometiam um épico familiar à altura. Mas o drama aqui vai além de uma briga por herança: existe todo um pano de fundo histórico que precisa ser contextualizado para o público de fora do Reino Unido.

Benjamin Lee Guinness foi um dos nomes mais importantes da Irlanda do século XIX. Herdeiro de uma das maiores fortunas do país, foi o grande industrial responsável por transformar a Guinness em um império global — mas também um filantropo incansável, um homem de fé e de compromissos cívicos. Chamado carinhosamente de “The Governor” pelos filhos, Sir Benjamin tornou a marca Guinness sinônimo de prosperidade irlandesa. Sua morte e seu testamento não apenas chocaram Dublin, mas moldaram o futuro da família e da própria cervejaria.

O Último Capítulo de um Patriarca

Os últimos meses de Sir Benjamin misturaram ambição política e esgotamento físico. Recém-nomeado baronete e membro do Parlamento, ele havia se estabelecido em Londres, mas logo se cansou da vida política. Em cartas ao primogênito, Arthur, o filho mais novo, Edward Cecil, descrevia o pai como “muito fraco e sem apetite”, quase forçado a permanecer em Westminster quando já ansiava por voltar ao sossego de St. Anne’s.

Na série da Netflix, esse conflito ganha dramaticidade, com diálogos tensos entre Benjamin e os filhos, algo não documentado, mas eficaz para reforçar o peso do dever sobre o desejo de paz. Mesmo debilitado, ele permaneceu em Londres para votar uma reforma do sufrágio — e morreu poucos dias depois, em 19 de maio de 1868, sendo levado de volta à Irlanda para o enterro.

Luxo com Propósito

Benjamin Lee vivia rodeado de conforto, mas sempre temperado por disciplina protestante e senso de dever cristão. St. Stephen’s Green, St. Anne’s e Ashford Castle eram sinônimo de luxo, mas também de rotina: orações diárias, educação rigorosa e trabalho precoce para os filhos. Era uma vida de abundância que carregava uma pedagogia. A série traduz esse contraste ao mostrar banquetes e jantares formais lado a lado com conversas sobre responsabilidade e legado.

O Testamento que Mudou Tudo

A morte de Sir Benjamin revelou a maior herança já registrada na Irlanda até então — mais de £1,1 milhão. Mas foi a forma desigual como ele dividiu seus bens que causou maior impacto.

Arthur Edward herdou Ashford Castle e St. Anne’s, além da baronetagem. Edward Cecil ficou com a casa de St. Stephen’s Green e, junto ao irmão, a gestão da cervejaria. Lee, o segundo filho, recebeu propriedades e uma soma significativa, mas com cláusulas que praticamente orientavam como deveria gastar o dinheiro. Annie, a única filha, ganhou um fundo de investimento sem restrições, mas, como era de se esperar para a época, foi excluída dos negócios.

Na série, a leitura do testamento vira uma cena carregada de tensão e ressentimentos, um recurso narrativo eficiente que dá peso dramático à desigualdade entre os herdeiros.

Um Império com Alma

O ponto central do testamento foi a maneira como Benjamin tratou a cervejaria — quase como um quinto filho. Ele determinou que o negócio deveria permanecer em mãos da família, com Arthur e Edward como sócios, e previu mecanismos para evitar a entrada de terceiros. Foi essa decisão que blindou a Guinness de pressões externas e permitiu que se tornasse a maior cervejaria do mundo.

A série explora essa cláusula como fonte de intriga, sugerindo desconfiança entre os irmãos. Não há registro histórico disso, mas o recurso dramatúrgico cumpre bem o papel de mostrar que grandes fortunas quase sempre cobram um preço emocional.

Entre História e Ficção

O grande mérito de House of Guinness é recriar uma Dublin em transformação, equilibrando tradição e modernidade e apresentando Benjamin Lee como um homem entre dois mundos: o do dever e o da família. Como toda boa dramatização histórica, a série amplia conflitos que talvez tenham sido mais silenciosos na vida real, mas faz isso sem trair o espírito da história.

No fim, a vida de Benjamin Lee Guinness é sobre legado — de um homem que não apenas expandiu um negócio, mas deixou um plano para que seus filhos, netos e bisnetos mantivessem o que ele construiu. A Guinness segue sendo, até hoje, um nome carregado de história, identidade e propósito.

Em um próximo texto, falarei da série em si, de como ela transforma fatos em drama e de por que essas escolhas narrativas ajudam a manter vivo o mito da família Guinness.


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