Há crimes que não se apagam — e outros que se multiplicam. O nome Lizzie Borden sobrevive há mais de 130 anos, não apenas como caso policial, mas como mito. Desde 1892, quando o pai e a madrasta foram assassinados a machadadas dentro da casa da família em Fall River, Massachusetts, Lizzie ocupa um espaço único na cultura americana: o da mulher que talvez tenha cometido o crime perfeito — ou o da mulher que carregou para sempre a culpa de algo que não fez.
Seu caso foi transformado em canção infantil, peça de teatro, ópera, longas-metragens, séries e até musicais. Desde o século 20, Lizzie é revisitada por Hollywood em ciclos de fascínio e horror, e cada atriz que a interpretou revelou uma faceta diferente desse mistério.

Lizzie Borden — as várias faces do mesmo mito
Pouca gente sabe, mas Lizzie Borden também virou ballet, e de forma tão poderosa quanto suas versões no cinema ou no teatro. O caso inspirou coreógrafos e compositores justamente porque a história é cheia de tensão silenciosa, claustrofobia doméstica e repressão emocional — tudo que a dança consegue expressar sem uma única palavra.
O caso inspirou uma das mais intrigantes criações da dança americana do século 20: o ballet “Fall River Legend”, coreografado por Agnes de Mille em 1948, com trilha de Morton Gould.
Agnes de Mille — a mesma de Rodeo e Oklahoma! — recriou o caso como uma parábola sobre culpa e destino. No ballet, Lizzie é chamada apenas de The Accused. Não há sangue visível, mas cada movimento carrega o peso da opressão doméstica, da religião e da histeria coletiva. O cenário austero, as figuras puritanas, o machado simbólico e a música tensa de Gould transformam a tragédia em pesadelo coreográfico.


Fall River Legend foi encenado por companhias como o American Ballet Theatre e o Joffrey Ballet, e é até hoje considerado uma das obras-primas da dança americana — não por contar a história literal de Lizzie, mas por capturar o que há de mais profundo nela: o terror da mulher que vive entre o pecado e a inocência.
Décadas depois, o mito continuou a inspirar outras formas de dança e performance contemporânea, de montagens modernistas a solos femininos sobre violência doméstica e repressão social. Em todas, Lizzie é símbolo — nunca apenas assassina.
A primeira grande reinterpretação para as telas veio em 1975, com Elizabeth Montgomery no telefilme The Legend of Lizzie Borden. A escolha era audaciosa: Montgomery era conhecida pelo humor leve de A Feiticeira, e a imagem da esposa perfeita contrastava brutalmente com a personagem acusada de matar a família. No filme, dirigido por Paul Wendkos, Lizzie é fria, controlada, mas perturbadoramente lúcida. A produção recebeu quatro indicações ao Emmy e marcou a memória coletiva ao insinuar que Lizzie teria cometido os assassinatos nua — uma metáfora poderosa para libertação e vergonha.

No mesmo ano, Hope Lang estrelou The Mystery of Lizzie Borden, uma versão televisiva menos sangrenta e mais analítica, em tom quase documental. Já nos anos 1980, Lynda Carter, a eterna Mulher-Maravilha, participou como narradora de uma série de dramatizações sobre crimes históricos, incluindo o de Lizzie, reforçando sua presença na cultura pop.
Décadas depois, o mito renasceu. Em 2014, Christina Ricci deu a Lizzie uma nova camada de ironia e autodefesa em Lizzie Borden Took an Ax, produção do canal Lifetime. O filme fez sucesso suficiente para gerar uma sequência: The Lizzie Borden Chronicles (2015), uma minissérie em tom gótico e quase sobrenatural. Ricci transformou Lizzie em anti-heroína — cínica, carismática, consciente do poder que o medo desperta. Era uma leitura feminista do mito, onde a mulher “culpada” se recusa a pedir perdão.
Em 2018, o caso ganhou seu retrato mais íntimo e político com Lizzie, dirigido por Craig William Macneill e estrelado por Chloë Sevigny, ao lado de Kristen Stewart como Bridget Sullivan, a empregada da casa. Aqui, a narrativa assume um ponto de vista decididamente moderno: Lizzie como mulher oprimida, enclausurada, sufocada pelo patriarcado e pelo abuso do pai — que encontra na violência uma forma radical de libertação. O subtexto queer, que em outras versões era apenas sussurro, torna-se explícito. É um filme de raiva contida e vingança silenciosa.

Além do cinema e da TV, Lizzie também chegou aos palcos. Michelle Fairley (a Catelyn Stark de Game of Thrones) protagonizou uma montagem teatral em Edimburgo, em 2008, apresentando a personagem como símbolo da hipocrisia moral vitoriana. No universo musical, ela ganhou forma punk e feminista no espetáculo Lizzie: The Musical (2010), interpretada por Amanda Palmer — que transformou o machado em instrumento de libertação, não de culpa.
E, em 1965, a ópera Lizzie Borden, de Jack Beeson, foi encenada no Metropolitan Opera de Nova York, tratando o caso como tragédia clássica. Ali, Lizzie não é criminosa — é vítima de repressão, aprisionada por convenções familiares e sociais.
Ou seja: Lizzie Borden é uma das personagens femininas mais reinterpretadas da história americana. Cada geração reinventa o crime conforme suas próprias ansiedades. Nos anos 1970, ela simbolizava o medo da mulher emancipada. Nos 2010s, tornou-se ícone de resistência. Agora, em 2026, Ryan Murphy promete uma nova leitura — e talvez a mais provocadora de todas.
O fascínio de Ryan Murphy por monstros reais
Depois de transformar Dahmer, os Menendez e Ed Gein em metáforas sobre moral e voyeurismo, Murphy encontrou em Lizzie o elo perfeito entre horror e crítica social. A quarta temporada de Monster, já em produção, revisitará o caso com elenco de peso: Ella Beatty (filha de Annette Bening e Warren Beatty) assume o papel-título; Rebecca Hall vive Abby Borden, a madrasta; Vicky Krieps será a empregada Bridget Sullivan; Billie Lourd interpreta a irmã Emma; e Jessica Barden dá vida à atriz Nance O’Neill, amiga — ou amante — de Lizzie.
Com direção de Max Winkler, a temporada promete o equilíbrio típico de Murphy entre reconstituição histórica e delírio psicológico, em que o machado é mais símbolo que arma — e o horror real está na histeria moral que transforma uma mulher em monstro.

Curiosamente, a nova Lizzie Borden nasce de outro tipo de lenda americana: o cinema. Ella Beatty, que interpreta Lizzie na nova temporada de Monster, é filha dos astros Annette Bening e Warren Beatty — dois ícones de Hollywood que, cada um à sua maneira, simbolizam eras distintas da indústria.
Formada pela Juilliard School, Ella representa uma geração de atrizes que unem tradição e introspecção. Antes de estrelar Monster, ela apareceu em Feud: Capote vs. The Swans (2024), também criada por Ryan Murphy, e chamou atenção pela intensidade silenciosa e olhar ambíguo — um contraste perfeito para a figura de Lizzie, uma mulher constantemente observada e mal compreendida.
É significativo que Murphy tenha escolhido justamente uma filha de Hollywood para dar vida à mulher que a América jamais conseguiu decifrar. A jovem herdeira, acostumada desde o nascimento a viver sob o peso de nomes lendários, agora encarna outro tipo de herança: o olhar público sobre a mulher que desafia as regras e paga caro por isso.
Uma vida que parecia comum
Lizzie nasceu em 1860, filha de Andrew Jackson Borden, um empresário local rígido e conservador. A mãe, Sarah, morreu cedo; e a madrasta, Abby Durfee Gray, entrou na família quando Lizzie ainda era criança. Ao lado da irmã mais velha, Emma, ela cresceu num lar de aparente estabilidade — mas com tensão em cada parede.
O pai era rico, mas parcimonioso. A casa dos Borden não tinha luxo nem conforto, apesar da fortuna da família. Lizzie, educada, religiosa e ativa na igreja, dava aulas na escola dominical e participava de obras sociais. Era o retrato da filha respeitável. Mas sob a imagem ideal, havia desconforto e isolamento.
O relacionamento com Abby era frio; havia rumores de disputas por herança e mágoas acumuladas. A casa — com portas trancadas entre cômodos e regras rígidas de convivência — parecia mais prisão que lar.

O dia em que o horror invadiu Fall River
Na manhã de 4 de agosto de 1892, Abby foi morta primeiro, com 19 golpes de machado no quarto de hóspedes. Horas depois, Andrew, o pai, foi atacado no sofá da sala — dez golpes fatais na cabeça. A cena era inominável.
A casa estava trancada. A empregada, Bridget Sullivan, ouviu Lizzie chamar por ajuda. Quando a polícia chegou, encontrou sangue, confusão, mas nenhum sinal de invasão. Logo, a suspeita se voltou à filha — a única pessoa presente durante o crime.
Lizzie manteve-se calma, talvez demais. Suas declarações mudavam, pequenos detalhes se contradiziam. E, em poucos dias, a mulher que até então era vista como exemplo de virtude virou manchete: “Lizzie Borden took an axe…”.
O julgamento do século — e o nascimento de uma lenda
Em 1893, Lizzie foi levada a julgamento. A imprensa transformou o caso em espetáculo. Pela primeira vez, o público americano assistia, fascinando-se, à imagem de uma mulher acusada de um crime que rompia todos os códigos sociais: parricídio.
O júri, formado apenas por homens, hesitou em acreditar que “uma dama” pudesse cometer tamanha brutalidade. E a absolveu. Mas o veredicto jurídico não apagou o estigma moral.
Lizzie e a irmã se mudaram para uma nova casa, batizada Maplecroft, onde viveram reclusas. A cidade nunca as perdoou. Lizzie passou o resto da vida tentando ser invisível — e falhando. Morreu em 1927, aos 66 anos, por complicações de saúde, e foi enterrada no mesmo cemitério que as vítimas.

Entre o machado e o mito
O caso Borden é um dos pilares do true crime porque sintetiza o dilema que o gênero mais ama explorar: o abismo entre aparência e verdade.
Os motivos permanecem envoltos em especulação: dinheiro, herança, raiva, abuso, repressão sexual. A teoria de um romance com Bridget Sullivan ganhou força nas últimas décadas — e, com Murphy à frente, é provável que seja um dos eixos dramáticos da nova série.
No fim, o caso fala menos sobre um crime e mais sobre controle: o controle do feminino, da sexualidade, da narrativa. Lizzie foi julgada por um crime, mas também por ser mulher, solteira, independente e, acima de tudo, inclassificável.
O fascínio que nunca morre
Mais de 130 anos depois, o nome Lizzie Borden continua ecoando como um feitiço. Cada nova versão — seja nas telas, nos palcos ou nas óperas — é uma tentativa de resolver o que jamais será resolvido.

Monster: The Lizzie Borden Story não precisa responder “quem matou?”. Basta perguntar o que o caso diz sobre quem somos — e sobre a sede coletiva de sangue e redenção que o true crime expõe com tanta clareza.
Ryan Murphy, mais uma vez, encontrou em Lizzie um espelho. Porque os monstros que ele recria não são apenas assassinos — são os reflexos distorcidos de uma sociedade que, há séculos, prefere condenar o mistério feminino a encará-lo de frente.
Lizzie Borden permanece lá, entre o mito e a dúvida, olhando de volta. E o olhar dela ainda pergunta: quem, afinal, é o verdadeiro monstro da história?
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