É inquestionável o talento de Ryan Murphy. Poucos autores da televisão contemporânea conseguem transitar com tanta segurança entre gêneros — do melodrama pop de Glee ao suspense político de The Politician, do terror estilizado de American Horror Story ao realismo sombrio de Dahmer. E, ainda assim, sua assinatura visual e narrativa continua imediatamente reconhecível: o fascínio pela estética do desconforto e o desejo de provocar.
Depois de ter sido duramente criticado por “explorar” traumas pessoais e coletivos ao recontar histórias sobre crimes reais, Murphy dobra a aposta em Monster: The Ed Gein Story, terceira parte da franquia antológica que se tornou um dos maiores sucessos da Netflix. Se The Jeffrey Dahmer Story e The Menendez Brothers já incomodaram pela maneira como ficcionalizaram tragédias, a nova temporada vai além — mais sombria, mais densa, e, paradoxalmente, mais autoconsciente.
O espelho do horror: quando o público é o verdadeiro “monstro”
Murphy nunca foi um diretor sutil, e aqui a intenção é clara: confrontar a sociedade que consome true crime como entretenimento. Ao revisitar o caso Ed Gein — o fazendeiro do Wisconsin que inspirou Norman Bates (Psicose), Buffalo Bill (O Silêncio dos Inocentes) e Leatherface (O Massacre da Serra Elétrica) —, o criador parece menos interessado no assassino e mais obcecado pelo público.
Há, sim, sangue e recriações meticulosas das cenas que Hollywood transformou em mitos, mas o ponto de Murphy é outro: o horror está na plateia. Monster se volta contra o próprio gênero que alimenta, questionando até que ponto a sociedade banalizou a violência, estetizando o sofrimento alheio. É um comentário poderoso — mas repetido tantas vezes que se torna, ironicamente, didático.

Entre o real e o artifício
A narrativa poderia ter sido contada em quatro episódios, mas se arrasta em oito, tornando-se irregular. Ao longo da temporada, o roteiro mistura fatos reais e liberdades artísticas — algumas criativas, outras puramente convenientes. Ed Gein matou oficialmente duas pessoas (talvez três), mas a série amplia o alcance simbólico de sua loucura.
Somente no sétimo episódio o quadro clínico do assassino é explorado em profundidade, revelando um diagnóstico de transtorno esquizoide — o que hoje seria classificado dentro do espectro da esquizofrenia. É um dos poucos momentos em que a série realmente tenta entender, e não apenas representar, a mente de Gein.
Charlie Hunnam entrega uma performance notável, contida e perturbadora, que deve levá-lo a indicações em premiações. Ainda assim, o que poderia ser um estudo psicológico se perde na necessidade de Murphy de explicar tudo ao espectador. Há boas intenções, mas pouco mistério.

Quando a ficção reescreve o mito de Hitchcock
Um dos elementos mais fascinantes do caso Gein foi seu impacto na cultura popular. O escritor Robert Bloch, que morava próximo à cidade de Plainfield, se inspirou diretamente no caso para escrever Psycho (1959), base do clássico de Alfred Hitchcock.
A série, porém, passa superficialmente por esse elo entre realidade e ficção. Murphy não explora o processo criativo de Bloch, nem a complexa relação entre trauma e arte. Tampouco acerta em alguns detalhes históricos: Anthony Perkins nunca hesitou em aceitar o papel de Norman Bates — embora vivesse sob o peso de esconder sua homossexualidade —, e Hitchcock, não encerrou a carreira ao reinventar o gênero do terror psicológico a partir de Psicose. O filme, aliás, não foi apenas uma virada estética, mas também uma crítica social disfarçada.
Um aceno a “Mindhunter” — e um adeus ao gênero?
O último episódio reserva uma homenagem inesperada à brilhante (e cancelada) série Mindhunter, também da Netflix. É uma piscadela para os fãs de true crime e para os estudiosos da mente criminosa: os agentes do FBI que criaram o termo serial killer aparecem brevemente, relembrando suas entrevistas com Gein — uma conexão real que Murphy utiliza como metáfora do nascimento do fascínio moderno por assassinos em série.
Com isso, vários assassinos apavorantes e conhecidos, de Ted Bundy, Ed Kemp e Richard Speck (que verdadeiramente escreveu para Gein), entre outros, passeiam pela tela. Eles como “fãs” de Gein enquanto o próprio Gein, colaborando com o FBI e os médicos, se frustra por considerar que a promessa de ajudá-lo a melhorar, nunca foi sincera.
Mas a homenagem também soa como despedida. Monster: The Ed Gein Story é, talvez, a tentativa de Murphy de encerrar um ciclo. De mostrar que o verdadeiro horror não está em Plainfield, mas na sala de estar — entre nós, espectadores que transformam monstros em ícones culturais.

Entre o sagrado e o profano: o legado do horror americano
Ao colocar o caso Gein como marco zero do “serial killer” moderno, a série revisita o DNA do gênero. Décadas antes de Dahmer, Bundy ou Gacy, já existiam figuras como Jack, o Estripador, e H. H. Holmes — cujo hotel de horrores foi retratado no best-seller The Devil in the White City (um projeto que Leonardo DiCaprio ainda sonha em adaptar).
Murphy sabe disso e transforma Monster em uma parábola sobre a América e sua obsessão pela violência. No fundo, o que ele expõe é a cultura de consumo da barbárie — o ciclo que vai do crime real à manchete, do livro ao filme, do trauma ao streaming.
E é aqui que o gênio de Ryan Murphy e o seu maior vício se encontram: ele denuncia um sistema do qual também é parte essencial.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
