A esperada adaptação do best-seller A Mulher na Cabine 10, com a atriz Keira Knightley, é uma promessa de tensão claustrofóbica, suspense naval e o drama psicológico de uma mulher desacreditada. Ver Keira interpretando Lo Blacklock é um convite para revisitar a narrativa sufocante que combina luxo, isolamento e o terror de não ser ouvida, e ver como isso se traduz visualmente: as águas inquietas, a luz fraca dos corredores do navio, o medo que nasce no silêncio.
Desde seu lançamento, o livro A Mulher na Cabine 10 foi colocado em diálogo direto com outros best-sellers femininos contemporâneos, livros que exploram a voz feminina, o psicológico e o confiável vs. o ilusório. Pensemos em Gone Girl (Garota Exemplar) de Gillian Flynn e The Girl on the Train (A Garota no Trem) de Paula Hawkins: mulheres narradoras marcadas pela instabilidade, pela dúvida, pela ambiguidade de memória, pela tensão entre o que vivenciam e o que as pessoas querem que acreditem que viveram. Ware absorve essa tradição: ela oferece uma narradora que, à primeira vista, parece vulnerável, emocionalmente abalada — e porém é, no centro da história, a testemunha lúcida de um crime que ninguém quer reconhecer.

Mas Cabine 10 vai mais além — e é aí que entra a parte que interessa: os paralelos ocultos, as inspirações cultas e simbólicas que entretecem o livro. Porque mais do que “um crime em alto-mar”, Ware busca trazer à tona mitos de identidade, duplicidade, invisibilidade feminina e o poder do gaslighting. Atenção para SPOILERS.
1. A inspiração da viagem, o mar como reino do silêncio
Em entrevistas, Ruth Ware disse que boa parte da inquietação do livro veio de experiências marítimas — aquele sentimento de estar em alto-mar, isolado, sem saída, e imaginar se algo sinistro ocorresse: ninguém poderia sair correndo, ninguém conseguiria te resgatar rápido. A ideia de crime “impossível de comprovar” nasce daí: você testemunha algo, mas todas as evidências podem ser apagadas ou contestadas por quem controla o ambiente — a tripulação, os registros, os demais passageiros.
Esse medo existencial — do mar como cemitério silencioso — é um mito recorrente na literatura de suspense: a água engole, oculta, apaga. Em Cabine 10, ela é tão personagem quanto os demais.
2. Casos reais: o desaparecimento que não vira manchete
Embora Ware nunca tenha apontado uma única história como base exclusiva, muita gente compara o livro ao caso real de Amy Lynn Bradley (1998), cuja história é recontada no documentário Onde Está Amy Bradley?, também disponível na Netflix. Amy foi vista pela última vez em um cruzeiro no Caribe, na varanda de sua cabine, mas depois desapareceu sem deixar rastros. Sua tragédia ficou marcada pela investigação ambígua, pelas teorias conspiratórias e pelo silêncio oficial.
Esse tipo de desaparecimento é o tipo de horror que é tão assustador: algo tão próximo de nós (uma viagem de lazer) que pode se tornar pesadelo, e, pior, algo que o mundo escolhe não investigar direito — ou descartar como erro, delírio ou confusão. Em A Mulher da Cabine 10, Ware bebe justamente dessa atmosfera de “suspeita não investigada”, de crime escondido sob o verniz de luxo.

3. Hitchcock, o duplo e o crime contornado
É aqui que o alerta de SPOILERS — a influência hitchcockiana — se torna cristalina. A Mulher na Cabine 10 parece fazer um tributo disfarçado ao cinema de Alfred Hitchcock, especialmente a filmes como Vertigo (Um Corpo que Cai) e The Lady Vanishes (A Mulher Desaparece). Vamos aos pontos:
- Troca de identidade / substituição: em Vertigo, temos uma mulher morta, uma substituta que tenta assumir o lugar da original, manipulação de imagem e memória. Em Cabine 10, Anne Bullmer está doente, morta ou indefinida, e Carrie é contratada para substituí-la — ato cruel e simbólico de apagamento: alguém que viveu, que se sente viva, que foi usada como marionete, e depois descartada.
- Gaslighting / dúvida à narradora: Hitchcock adorava jogar com a percepção dos espectadores, mas também com a dúvida interna da protagonista — quem é confiável? O que é real?
Em The Lady Vanishes, uma mulher testemunha o desaparecimento de uma passageira no trem — e ninguém acredita nela. Ware relembra esse padrão: Lo diz que viu algo, que ouviu algo, que alguém foi jogado ao mar — mas ela é desacreditada, considerada instável, paranoica. A dúvida se instala: ela enlouqueceu? Está inventando? - Protagonista com trauma / vulnerabilidade: o herói clássico hitchcockiano (ou heroína) geralmente tem uma fissura — medo, culpa, trauma — algo que o antagonista explorará. Lo carrega um trauma de assalto recente à sua casa em Londres, insônia, ansiedade. Hitchcock amava personagens psicológicos assim (lembrar Spellbound, por exemplo).
Então Ware não faz só um thriller inspirado por Hitchcock — ela recicla simbolicamente as essências hitchcockianas no interior feminino: identidade distorcida, mundo conspiratório ao redor, suspeita constante, o “crime que pode ser negado”. Um recurso usado também no sucesso dos anos 1980s: Dublê de Corpo.

4. A “dor da invisibilidade feminina” e a dupla Lo / Carrie
Aqui entra tua percepção mais fina, e é nela que mora a riqueza simbólica do livro. Lo e Carrie são, de certo modo, espelhos imperfeitos uma da outra:
- Lo representa a mulher que sofre, que foi ferida, que é desacreditada — mas que insiste em sua versão da verdade. Ela é uma voz que clama diante do silêncio coletivo, diante das instituições que preferem não acreditar.
- Carrie representa a mulher que foi usada como brinquedo para encobrir outro crime, que vive à margem, substituta descartável, que assume um papel que não é seu.
- Juntas, ou em confronto, elas dramatizam o tema do duplo feminino: quem é real? Quem terá o direito de existir plenamente? Quem será credível?
A morte ou o desaparecimento de Carrie ao final — e o fato de que parte da narrativa deixa em aberto se ela ainda está viva — reforça o mito da mulher desaparecida, da mulher que some, que some pela própria lógica masculina do crime, da manipulação, da negação.
Além disso, o mar como símbolo funciona como o inconsciente feminino — um lugar onde memórias afundam, onde verdades são engolidas, onde as mulheres desaparecem para que as versões oficiais prevaleçam.

5. Entre o contemporâneo e o clássico: o thriller feminino repensado
Voltemos a Gone Girl e The Girl on the Train. Essas obras redefiniram o thriller feminino moderno: mulheres como narradoras não confiáveis, inversão de expectativas, questões de gênero e controle narrativo. Ware se aproveita dessa herança, mas retorna ao classicismo britânico do mistério fechado. Ou seja: ela toma o que há de moderno — a narrativa psicológica fragmentada, a suspeita sobre a própria percepção — e reintroduz o jogo de salas fechadas, elenco restrito, mistério de identidade e ambientação ditada pelo isolamento.
Logo, A Mulher na Cabine 10 é um livro que respira duplamente: moderno e clássico, feminino e simbolicamente hitchcockiano, baseado em casos que mexem com o medo real de desaparecer sem deixar vestígio. E a adaptação com Keira Knightley será uma nova lente — veremos o quanto esses códigos visuais podem ressurgir na tela: os espelhos, os corredores do navio, a água escura ao longe, o rosto de Carrie que pode ou não estar viva.
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