Charlotte Sometimes — o sonho que nunca terminou

Há canções que não envelhecem porque parecem existir fora do tempo. Charlotte Sometimes, lançada em 9 de outubro de 1981, é uma dessas. O The Cure já havia mergulhado no território do estranho e do melancólico em Faith, e caminhava em direção ao abismo existencial de Pornography. Nesse intervalo — um espaço suspenso entre sombra e claridade — Robert Smith escreveu uma das mais delicadas e inquietantes obras da banda. Uma canção sobre o descompasso entre o corpo e a alma, sobre acordar em outro tempo e não reconhecer mais quem se é.

A origem de tudo está em um livro esquecido nas estantes da Inglaterra dos anos 1960. Charlotte Sometimes, de Penelope Farmer, publicado em 1969, contava a história de uma menina que, ao adormecer em um novo colégio interno, acorda quarenta anos antes, durante a Primeira Guerra Mundial, no corpo de outra garota chamada Clare. À noite, elas trocam de lugar, e os limites entre uma e outra começam a desaparecer. A Charlotte que acorda no passado já não é mais inteiramente Charlotte; e a Clare que desperta no futuro carrega lembranças que não viveu. É um livro sobre o espelho, sobre o tempo e sobre a fragilidade da identidade — temas que Robert Smith transformaria em som.

Smith conheceu o livro quando era criança. Em Crawley, Sussex, o irmão mais velho costumava ler histórias para ele e suas irmãs antes de dormir. Charlotte Sometimes era uma delas. Décadas depois, quando conheceu Penelope Farmer, ele lhe contou: “Meu irmão mais velho costumava ler para nós antes de dormir. Eu tinha uns doze anos, mais ou menos. O seu livro foi um deles. Ele nunca saiu da minha cabeça. Quando comecei a fazer música, quis compor uma canção sobre ele.”

O que o marcou não foi apenas a história, mas a maneira como ela foi ouvida — a cadência noturna, o tom hipnótico, a voz que vem de fora e nos conduz a outro tempo. Era uma lembrança auditiva, e foi assim que ele a reescreveu: como quem tenta sonhar de novo algo que nunca esqueceu.

Penelope Farmer, gêmea idêntica, sempre escreveu sobre duplas e espelhamentos. Em Charlotte Sometimes, transformou a infância em metáfora para a dissolução do eu. O colégio, com seus corredores longos e camas alinhadas, é um espaço de eco e aprisionamento, quase um personagem. A viagem no tempo não é científica, é emocional: Charlotte atravessa décadas da mesma forma que atravessamos fases da vida — sem perceber, acordando um dia diferente do que fomos. Quando o livro foi lançado, foi recebido como literatura juvenil, mas a crítica o revisitou mais tarde como uma meditação sobre identidade e perda. É, até hoje, uma história melancólica sobre o medo de ser esquecida.

Quando Robert Smith compôs Charlotte Sometimes, quis recriar essa sensação. Ele chamou o resultado de um “straight lift” — uma adaptação direta. E foi mesmo: várias frases da letra são citações literais do livro. Farmer escreveu: “All the faces, all the voices blur, change to one face, change to one voice.” Smith cantou: “All the faces, all the voices blur, change to one face, change to one voice.” A música começa com a mesma confusão da personagem — sem contexto, sem explicação, já dentro do sonho. “All the faces, all the voices blur” é o momento exato em que Charlotte perde o controle da própria consciência.

O single foi gravado em julho de 1981 e lançado em 9 de outubro, com Splintered in Her Head no lado B — outra canção inspirada por uma frase do livro. Musicalmente, é uma ponte entre dois mundos: a contenção melódica de Faith e a densidade emocional de Pornography. A voz de Smith parece vir de um quarto vazio, cercada por ecos. O baixo, como um pulso, marca o tempo que não passa. Tudo é sonâmbulo, suspenso, circular. “Sometimes I’m dreaming, where all the other people dance…” — como se a vida fosse sempre algo que acontece em outro lugar.

O vídeo foi filmado no Holloway Sanatorium, um antigo hospital psiquiátrico vitoriano. Não poderia haver cenário mais perfeito. Uma atriz percorre os corredores abandonados, perdida entre reflexos e paredes que parecem respirar. Robert Smith a observa, imóvel, cantando sem expressão, como se estivesse preso no mesmo sonho. O sanatório, o internato, o tempo: tudo se repete. Até a capa do single é um espelho — a foto distorcida de Mary Poole, namorada e futura esposa de Smith, um rosto familiar que parece de outra pessoa. A mesma imagem, sem distorção, voltaria anos depois em Pictures of You, selando a ideia de que, no universo de Smith, o amor e o tempo são variações do mesmo espelho.

Quando conheceu Robert Smith, Penelope Farmer ficou surpresa com a sinceridade dele. Ela admitiu ter se irritado, no início, ao perceber o uso literal de suas palavras sem aviso. Mas no encontro, ele lhe entregou um exemplar do livro para autografar e disse, rindo: “You can see how inspired I was — how I nicked it.” Ela escreveu depois que ver a história renascer na música foi “como reencontrar uma criança perdida no tempo”. É uma definição perfeita, tanto para o livro quanto para a canção.

Porque Charlotte Sometimes é isso: o reencontro com algo que ainda dói, mas não desaparece. É uma canção sobre o deslocamento, sobre acordar em outro lugar e perceber que o que ficou para trás talvez nunca tenha existido de verdade. Quarenta e quatro anos depois, ela continua atual porque fala daquilo que o século 21 tornou cotidiano: a identidade em trânsito, a confusão entre o que é lembrança e o que é invenção. O que Charlotte vive no tempo é o que vivemos na memória — a perda constante de quem fomos.

Robert Smith transformou uma leitura de infância em um hino sobre o esquecimento e a permanência. Penelope Farmer escreveu sobre uma menina que adormece em um tempo e acorda em outro; Smith compôs sobre o homem que nunca mais conseguiu acordar completamente. E talvez seja por isso que Charlotte Sometimes ainda soa tão viva: porque continua sussurrando o que todos tememos ouvir — que o tempo não é linear, que o eu é uma miragem, e que algumas histórias, como os sonhos mais vívidos, simplesmente nunca terminam.


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