Kate Wyler: o poder (e a contradição) do anti-fashion em A Diplomata

Tenho minhas reservas com Kate Wyler — e talvez seja justamente por isso que ela me fascine. Em A Diplomata, Keri Russell interpreta uma mulher que luta contra a própria visibilidade. Kate não quer ser olhada, mas é impossível não olhar. Evita o glamour, mas o encarna sem perceber. É o retrato perfeito da contradição entre querer ser levada a sério e ser constantemente julgada pela superfície.

Desde o primeiro episódio, seu figurino é um manifesto. Quando assessores e estilistas tentam transformá-la em uma “figura pública adequada”, ela corta o papo com impaciência: “tenho um terno preto e outro terno preto”. É uma fala que define a personagem inteira. Para Kate, roupa é ferramenta, não ornamento. Ela se veste para se mover, pensar, negociar — e, se necessário, correr. É uma mulher que trabalha no limite, entre o caos e a estratégia, e não tem tempo para suavizar as bordas.

Seus ternos escuros — preto, cinza, azul-profundo — criam uma estética quase monástica. Linhas retas, cortes precisos, tecidos de qualidade. O guarda-roupa, desenhado por Roland Sanchez, se baseia em peças Theory e blusas Vince, tudo escolhido para unir elegância e prontidão. Como a própria Debora Cahn resumiu: Kate precisa “parecer bem e ser capaz de correr se bombas caírem do céu”.

É a diplomata que precisa parecer firme e invisível ao mesmo tempo. E é justamente essa tentativa de desaparecer que a torna inesquecível.

A mulher que virou ícone sem querer

A estética anti-fashion de Kate acabou se tornando uma das imagens mais marcantes da TV recente. A bolsa cruzada — prática, inseparável — virou quase extensão do corpo, sua armadura portátil. E a mulher que não queria ser lembrada virou referência de estilo.

As buscas por “o terno da Kate Wyler” ou “a bolsa da Kate Wyler” provam a ironia central da série: quanto mais ela tenta se camuflar, mais visível se torna.

A Diplomata sabe disso e se diverte. Na terceira temporada, uma agente da CIA, encarregada de proteger a segunda-dama, é disfarçada de Kate. Para isso, colocam a agente num terno e deixam o cabelo desgrenhado — uma caricatura viva. A própria Kate, incomodada, se defende (“eu lavo o cabelo, tá?”) e pede que penteiem a mulher. Ninguém o faz.

É uma piada interna, autodepreciativa e meta: a série brinca com a imagem pública de Keri Russell e com o fato de o cabelo de Felicity ainda ser lembrado décadas depois.

O cabelo e o “soft power”

O cabelo de Kate é tão falado quanto seus ternos. Sempre preso às pressas, desalinhado, funcional. É a antítese do penteado político. Mas a série não trata isso como descuido — trata como linguagem.

Na segunda temporada, esse tema ganha corpo na conversa entre Kate e Grace Penn (Allison Janney), vice-presidente dos EUA. É um duelo entre duas formas de poder feminino. Grace, impecável e midiática, representa a política da imagem; Kate, prática e irritadiça, despreza o teatro visual. Mas Grace é quem dá a lição mais importante da série: “Isso é soft power.”

Ela explica que, no mundo da diplomacia, ninguém vai ler relatórios — mas o rosto da embaixadora aparecerá “12 mil vezes por dia”. A imagem, portanto, é arma de influência. É cultura, política e empatia condensadas na forma como alguém se apresenta.

Grace não fala de vaidade, fala de poder simbólico. É uma aula sobre política de gênero e percepção pública. Kate rejeita o conselho, mas algo muda. Porque, no fundo, Grace tem razão. O modo como ela se apresenta também é uma política — e até um coque malfeito pode ser diplomacia.

O peso dos vestidos

Se os ternos são armaduras, os vestidos são rachaduras. Ao longo da série, cada vestido marca um momento de transição — emocional, política, até existencial.

O primeiro é o “Cinderella dress”, branco e glamouroso, que ela é obrigada a usar em uma sessão de fotos. Antes de vestir, ela protesta: “Não sou Cinderela. Estou aqui para 30 funerais.” A fala é típica de Kate — afiada, impaciente, incapaz de fingir leveza. Mas é também prenúncio: a mulher que rejeita o papel de princesa terminará a temporada descendo uma escadaria como uma.

No episódio final da primeira temporada, vem o vestido vermelho, talvez o figurino mais comentado da série. A cena, filmada no Louvre, é de uma beleza quase simbólica. Depois de uma temporada inteira em preto, Kate surge em um longo vermelho criado pela Galvan London, redesenhado pelo figurinista para ser mais dramático — o tom foi ajustado para se destacar das paredes do museu, e o trem do vestido estendido para que Dennison pudesse ajudá-la a descer a escada, acentuando o romantismo do momento.

“Quando você veste um vestido vermelho, é porque quer dizer algo”, disse Keri Russell.
E é isso mesmo: aquele vermelho é raiva, liberdade, renascimento. Como explicou a showrunner, Debora Cahn, é o oposto do “tenho um terno preto e outro terno preto”. É o instante em que Kate aceita ser vista.

Depois de ser traída por Hal e sufocada pela própria função, ela escolhe a cor da visibilidade. É um gesto político e íntimo. É o momento em que ela abre, nas palavras da showrunner, “a porta para uma vida diferente”.

Na terceira temporada, essa ideia continua. O vestido preto de paetês, colado ao corpo, é uma evolução da armadura: ainda é preto, mas agora reflete luz. É a metáfora perfeita da personagem que, depois de tanto se esconder, começa a brilhar por escolha própria.

E há o vestido creme, delicado, usado quando Hal a vê com Callum. É o primeiro figurino em que ela parece vulnerável. O tecido leve, o corte solto — é o corpo da mulher, não o uniforme da embaixadora. Pela primeira vez, Kate parece permitir que a pele respire, que a personagem exista fora da função.

Cada um desses momentos é uma fresta. E juntos, formam o retrato de uma mulher aprendendo a conciliar o trabalho com a própria presença.

Reconciliação com o espelho

Na terceira temporada, Kate Wyler já não parece em guerra com o reflexo. Ainda é prática, ainda usa os tons neutros e a bolsa cruzada, mas há uma leveza nova. As roupas continuam funcionais, mas agora parecem escolhidas — não impostas. Ela entendeu que pode ser coerente sem ser rígida. Que o visual não a diminui; ao contrário, traduz sua autoridade.

Fora da tela, Keri Russell vive o mesmo paradoxo: a atriz que sempre cultivou um estilo discreto se transformou, ironicamente, em ícone fashion. Entrevistas, editoriais, eventos — todos ecoando a estética Wyler, de poder silencioso e elegância funcional.

O paradoxo final

No fim, A Diplomata nunca foi apenas sobre política internacional, mas sobre política da imagem.
Grace Penn chama isso de soft power — a capacidade de influenciar sem impor. E Kate, a contragosto, aprende a usá-lo. Sua evolução visual é sua narrativa interna: dos ternos escuros que tentavam apagá-la aos vestidos que a fazem existir. O figurino conta a história de uma mulher que queria passar despercebida e acabou se tornando um símbolo.

Kate Wyler é o anti-fashion que virou referência. A mulher que usa preto para se esconder e termina brilhando com ele. A que começa dizendo “não sou Cinderela” e termina descendo a escadaria do Louvre. A que ri do cabelo despenteado e descobre que até isso é linguagem de poder.

No fundo, é simples: quando você não quer provar nada, acaba provando tudo. E esse é o verdadeiro poder de Kate Wyler.


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