O Fantasma da Ópera, cem anos depois: o mito, o cinema e o olhar de Guillermo del Toro?

Guillermo del Toro sempre foi mais do que um contador de histórias sombrias: ele é um restaurador de mitos. Seu cinema nasce das ruínas da fantasia e da compaixão que resta diante do monstruoso. Em 2025, ao lançar sua aguardada versão de Frankenstein, Del Toro reafirmou o que o mundo já sabia — ninguém traduz melhor as sombras com alma. E, talvez por isso, sua mais recente declaração — o desejo de revisitar O Fantasma da Ópera — parece não apenas natural, mas inevitável. Afinal, há poucos personagens na literatura tão próximos do universo visual e emocional do diretor mexicano quanto Erik, o homem deformado que vive sob a Ópera de Paris e ama a música tanto quanto teme o olhar do outro.

O livro e o mito nascem do subterrâneo

Antes de ser mito, O Fantasma da Ópera foi reportagem. O autor, Gaston Leroux, era jornalista policial e crítico teatral em Paris no início do século 20. Acostumado a misturar fatos e ficção, ele se inspirou em lendas urbanas reais sobre o Palais Garnier, o grande teatro de ópera inaugurado em 1875. Diziam que havia um lago subterrâneo sob o prédio — que de fato existe, usado até hoje para treinamento dos bombeiros —, túneis secretos, um camarote amaldiçoado e até um esqueleto encontrado durante uma reforma. Leroux uniu essas histórias à tradição gótica francesa e publicou seu romance em capítulos no jornal Le Gaulois entre setembro de 1909 e janeiro de 1910, antes de lançá-lo em livro.

O que o tornava tão original era o tom: Leroux tratava o “fantasma” quase como uma reportagem investigativa. Ele abria o romance afirmando ter encontrado documentos que provavam a existência real de Erik, o arquiteto deformado que vivia nos subterrâneos da Ópera. A mistura de jornalismo, suspense e lirismo fez nascer um novo tipo de horror — o horror emocional, onde o verdadeiro terror não é o monstro, mas a solidão.

1925: o nascimento do ícone cinematográfico

Quando Hollywood decidiu adaptar Le Fantôme de l’Opéra, o cinema ainda aprendia a falar — literalmente. O filme de 1925, dirigido por Rupert Julian, é um clássico do cinema mudo e um dos pilares do gênero de terror. Estrelado por Lon Chaney, o “Homem das Mil Faces”, a produção foi tão ambiciosa quanto turbulenta: três diretores diferentes passaram pelo projeto, houve refilmagens, cortes e reedições, até o lançamento oficial no Astor Theatre de Nova York em 6 de setembro de 1925.

Chaney, que também criou sua própria maquiagem, transformou o Fantasma em uma figura grotesca e trágica. Ele usou fios de aço, algodão e pintura branca para afinar o nariz e projetar os ossos do rosto — uma imagem tão chocante que o estúdio proibia que fotos do personagem fossem divulgadas antes da estreia. O resultado foi um choque coletivo: o público gritava nos cinemas quando Christine, a heroína, arrancava a máscara do Fantasma pela primeira vez.

O filme foi um sucesso de bilheteria e um marco técnico. Misturava o preto e branco habitual com cenas em Technicolor de duas cores, algo raríssimo na época. Sua cenografia — reproduzindo com precisão o interior da Ópera Garnier — impressiona até hoje. E embora o som ainda fosse inexistente, a música executada ao vivo em cada exibição ampliava a experiência teatral. Assim, o Fantasma nascia como o primeiro grande “monstro romântico” do cinema, um precursor direto de tudo o que viria depois — de Drácula a O Corcunda de Notre Dame.

Do palco à eternidade: o musical de 1986

Mas foi em 1986, com o musical de Andrew Lloyd Webber, que O Fantasma da Ópera se tornou uma instituição cultural. Estreando no Her Majesty’s Theatre, em Londres, e depois na Broadway, o espetáculo reinventou o mito com trilhas grandiosas, cenários monumentais e um novo tipo de paixão. O Fantasma virou anti-herói. Sua dor, antes grotesca, agora soava trágica. Christine, antes vítima, transformava-se em musa dividida entre a compaixão e o amor.

O sucesso foi imediato: a peça se tornou o musical mais longevo da história da Broadway, com mais de 13 mil apresentações e público estimado em 150 milhões de pessoas em todo o mundo. Quando Joel Schumacher levou a história ao cinema em 2004, com Gerard Butler e Emmy Rossum, a recepção foi mista, mas a trilha de Webber manteve-se como uma das mais reconhecíveis do teatro moderno.

Há incontáveis versões: a de 1943, com Claude Rains, apostou em cores vibrantes; a de 1962, da Hammer Films, mergulhou no horror britânico gótico; a de 1989, estrelada por Robert Englund, abraçou o grotesco e o sanguinolento; e até uma releitura moderna ambientada em Nova Orleans. Nenhuma, porém, igualou o equilíbrio entre paixão, tragédia e espetáculo alcançado pela de 1925 — ainda hoje considerada a mais poderosa representação do mito.

Cem anos depois: o eco de um grito no subsolo

Em 2025, o centenário da versão muda reacende a fascinação pelo Fantasma. Cópias restauradas em 4K circulam em festivais de cinema silencioso com trilhas executadas ao vivo. É como revisitar uma tumba gloriosa: um testemunho do poder que o cinema tem de transformar silêncio em emoção.

O filme de 1925 resiste porque não é apenas um conto de terror, mas um retrato sobre o desejo de ser visto. O horror ali é o da exclusão. O monstro de Leroux — e de Chaney — não é uma aberração moral, mas o espelho distorcido da humanidade. E é justamente por isso que Guillermo del Toro se interessa em trazê-lo de volta.

O olhar de Guillermo del Toro: monstros com alma

Depois de filmes como O Labirinto do Fauno, A Forma da Água e agora Frankenstein (2025), Del Toro construiu uma assinatura visual e moral inconfundível: monstros que amam, humanos que destroem. Seus personagens vivem entre mundos — o visível e o oculto, o belo e o disforme — e encontram redenção na sensibilidade.

Em entrevistas recentes, ele declarou que adoraria dirigir uma nova versão de O Fantasma da Ópera, mas “de um jeito diferente”. O comentário, breve, diz muito. Em sua leitura, o Fantasma não seria apenas uma figura trágica, mas um artista aprisionado pela própria criação, um homem cuja deformidade é metáfora da sociedade que rejeita o que não entende. É, de certa forma, o mesmo coração de Frankenstein: a criatura que busca o amor do seu criador e só encontra horror.

O retorno ao subterrâneo

Revisitar O Fantasma da Ópera após um século é mais do que um exercício de nostalgia. É reconhecer que a história de Erik, Christine e Raoul continua viva porque fala sobre o desejo universal de ser amado apesar da aparência, de ser ouvido mesmo no escuro. O livro de Leroux nasceu das sombras da Paris Belle Époque; o filme de 1925 deu forma ao medo da diferença; o musical de 1986 transformou esse medo em melodia.

Agora, cem anos depois, talvez só Guillermo del Toro — o cineasta que transforma ruínas em catedrais e criaturas em santos — possa devolver ao Fantasma o que ele sempre quis: uma alma compreendida.


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