Quando Kenneth Branagh lançou Frankenstein de Mary Shelley em 1994, parecia reunir todos os ingredientes para um clássico instantâneo: elenco estelar (Robert De Niro, Helena Bonham Carter, John Cleese e Tom Hulce), uma produção luxuosa e o selo de qualidade de Francis Ford Coppola como produtor. Mas, apesar do potencial, o filme não deu certo. Foi um fracasso de crítica e de público, e até hoje é lembrado mais pelo excesso do que pela emoção.

O excesso de teatralidade e o ego autoral
Branagh, então no auge de sua reputação como “herdeiro de Olivier”, trouxe ao filme sua marca teatral. Mas o estilo que funcionava nas adaptações de Shakespeare virou peso aqui: tudo é grandioso, exaltado, excessivo. A câmera gira em torno de Victor Frankenstein como se o diretor quisesse que o público o admirasse mais do que o temesse. O resultado foi uma obra mais preocupada em exibir virtuosismo do que em explorar o horror moral e a tragédia íntima que definem o romance de Mary Shelley.
Frankenstein de Mary Shelley não decide o que quer ser. Oscila entre o melodrama romântico e o terror gótico, entre a história de amor e a reflexão filosófica. A Criatura de De Niro — ao mesmo tempo sensível e grotesca — parece presa entre duas leituras opostas, e o filme nunca consegue encontrar um equilíbrio emocional.
A maior “licença poética”: Elizabeth e a tentação da Noiva
No livro de Mary Shelley, Elizabeth Lavenza é assassinada pela Criatura na noite de núpcias — uma tragédia definitiva. Victor, devastado, jamais tenta ressuscitá-la. Mas no filme de Branagh, a história toma outro rumo. O diretor admitiu que “desviou do livro” porque considerou irresistível a ideia de fundir Frankenstein com o clássico A Noiva de Frankenstein (1935).
Assim, após a morte de Elizabeth (Helena Bonham Carter), Victor — enlouquecido de dor — usa partes do corpo dela e de Justine (a empregada inocente executada por ter matado o irmão de Victor) para recriá-la. Elizabeth volta à vida, mas o resultado é uma figura híbrida, trágica, cindida entre a lembrança de quem foi e o horror de sua nova forma. Em uma das cenas mais intensas do filme, Elizabeth desperta, reconhece sua monstruosidade e se mata diante dos dois homens que a criaram.

Essa sequência não existe no livro de Shelley. É a “traição mais fascinante” do filme — um momento em que Branagh abandona a fidelidade literária em nome de um impulso puramente cinematográfico. É também uma ponte simbólica entre a tragédia romântica da autora e o mito visual criado por James Whale em 1935, quando o monstro pediu ao doutor que lhe desse uma companheira.
Bastidores: o caos artístico e pessoal
As turbulências de Frankenstein não se limitaram à tela. O projeto nasceu de disputas criativas intensas — o estúdio queria um filme mais comercial; Branagh insistia em algo mais trágico e literário. A montagem final reflete esse impasse: o ritmo é irregular, e cenas cruciais parecem truncadas.
Mas o filme também marcou um ponto de virada pessoal na vida do diretor. Durante as filmagens, Branagh se separou de Emma Thompson, sua parceira desde os tempos do teatro e dos filmes de Shakespeare. O casamento — considerado um dos mais sólidos do cinema britânico — implodiu no meio da produção, em parte por causa do romance que surgiu entre Branagh e Helena Bonham Carter, que interpretava Elizabeth.

O escândalo foi enorme: Emma e Helena eram amigas próximas, tendo trabalhado juntas em Howards End (1992), um ano antes. A imprensa britânica transformou o triângulo amoroso em um espetáculo paralelo ao próprio filme, e, para muitos, Frankenstein passou a simbolizar o momento em que a vida pessoal de Branagh se confundiu com o drama que ele tentava filmar.
Branagh e Bonham Carter permaneceram juntos por cerca de cinco anos e dividiram dois filmes (Frankenstein e The Theory of Flight, de 1998). Depois da separação, os dois seguiram carreiras brilhantes, mas o episódio ficou marcado como o instante em que o mito do “casal dourado” do cinema inglês desmoronou — e Frankenstein ficou como o retrato involuntário desse colapso.
Sombra de Drácula de Bram Stoker
O filme de Branagh nasceu no embalo do sucesso do Drácula de Coppola (1992), que havia revitalizado o horror gótico com sensualidade e estilo visual exuberante. O marketing vendeu Frankenstein como “o complemento natural” daquela estética. Mas a comparação foi cruel. Coppola sabia controlar o excesso; Branagh se afogou nele.


A trilha sonora de Patrick Doyle: a alma que o filme precisava
Se há um elemento verdadeiramente brilhante em Frankenstein, é a trilha de Patrick Doyle. Frequentemente lembrada como uma das mais intensas de sua carreira, a música traduz com precisão o que o filme tenta — mas nem sempre consegue — comunicar.
Doyle, colaborador habitual de Branagh, cria uma partitura que mistura o romantismo trágico com o horror moral, combinando uma orquestração poderosa e temas de rara beleza. Como observou o site Movie Music UK, “em muitos sentidos Frankenstein é a culminação desse estilo de Doyle: uma fusão pessoal de drama sombrio, romantismo varrido e suspense espetacular.”
O tema principal, grandioso e melancólico, expressa a ambição desmedida de Victor Frankenstein; já o tema de amor, ouvido em momentos como The Wedding Night, é pura tragédia: delicado, apaixonado e fadado à destruição. O contraste entre o lirismo e o peso orquestral dá à música um papel quase narrativo — ela conta a história de modo mais sensível do que o roteiro.

Mesmo quando o filme se perde em seus próprios excessos, a trilha permanece coerente: épica, humana e emocionalmente devastadora. É, de certa forma, o verdadeiro coração do filme.
O romance de Mary Shelley é uma parábola sobre culpa, solidão e a busca por pertencimento. Branagh, no entanto, se deixa dominar pela estética. Apesar da força da trilha de Doyle e da entrega de De Niro, o público não se conecta emocionalmente. É um espetáculo grandioso e vazio — visualmente exuberante, mas sem alma.
Com o tempo, Frankenstein de Mary Shelley passou a ser visto como um curioso monumento ao excesso. Hoje há quem o defenda como uma das adaptações mais fiéis ao texto original, ainda que desequilibrada. A trilha de Patrick Doyle, por outro lado, é quase unanimemente elogiada — a grande herança emocional de um filme que quis ser trágico e terminou operístico.
E agora, o Frankenstein de Guillermo del Toro
Três décadas depois, Frankenstein retorna às telas pelas mãos de Guillermo del Toro, e a expectativa é enorme. O diretor mexicano, que sempre explorou o humano dentro do monstruoso (O Labirinto do Fauno, A Forma da Água), promete uma abordagem mais fiel ao espírito da obra de Mary Shelley — uma reflexão sobre empatia, solidão e criação.


Entre a versão de Branagh e a de Del Toro houve muitas adaptações menores, para TV e cinema, mas nenhuma com esse nível de ambição autoral. É justo dizer que Del Toro assina a primeira grande releitura cinematográfica de “Frankenstein” desde 1994 — uma resposta moderna ao barroquismo emocional de Branagh.
Se Doyle transformou o excesso em música, Del Toro parece buscar o oposto: o silêncio, o olhar e o gesto. Onde Branagh gritava, Del Toro sussurra. O novo Frankenstein promete devolver ao mito sua humanidade — e talvez, finalmente, reconciliar o monstro e o criador com a empatia que a partitura de Patrick Doyle já intuía há 30 anos.
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