O consumo de true crime é mais antigo do que o streaming — e, de certa forma, mais antigo do que a própria noção de entretenimento moderno. Há algo profundamente perturbador em observar uma pessoa “comum” romper o pacto silencioso da civilização e atravessar o limite que separa o incômodo do crime, a frustração da tragédia. O sucesso de A Vizinha Perfeita não vem apenas de sua história — infelizmente, familiar para quem acompanha as estatísticas americanas —, mas da forma radical como ela é contada: sem entrevistas, sem reconstituições, sem uma única imagem produzida para o documentário.
Tudo o que vemos são registros reais. Câmeras de segurança, vídeos de celular, gravações da polícia. Cada fragmento é uma janela para a banalidade de uma guerra de vizinhos que termina em assassinato. Não há narrativa editorial empurrando o espectador para um lado. Não há narração manipuladora. Só o peso dos fatos. E é justamente essa escolha, aparentemente fria, que torna o filme devastador.

Dirigido por Geeta Gandbhir — vencedora do prêmio de melhor direção no Festival de Sundance —, A Vizinha Perfeita vai muito além do true crime convencional porque se recusa a adotar o sensacionalismo que domina o gênero. O documentário organiza o caos em vez de explorá-lo. Gandbhir, que conhecia pessoalmente a família da vítima, transforma o que poderia ser um relato indignado em um exercício de contenção e precisão.
A história é a de Ajike “AJ” Shantrell Owens, uma mulher negra de 35 anos, mãe de quatro filhos, morta em junho de 2023 por sua vizinha branca, Susan Lorincz, na Flórida. O contexto é um que poderia acontecer em qualquer lugar do planeta: quem nunca lidou com um vizinho chato, reclamão, em geral solitário? O surpreendente foi o crime inesperado, que, ao revermos as imagens, percebemos ter sido quase anunciado, ainda que ninguém o tenha realmente enxergado a tempo.
Aqui, vemos uma comunidade marcada por pequenas tensões diárias, reclamações, ruídos, olhares atravessados. Lorincz chamava a polícia com frequência, alegando que as crianças da vizinhança, entre elas os filhos de Owens, invadiam seu quintal. O acúmulo dessas interações banais culmina em um disparo inesperado de arma de fogo através da porta. E, como Gandbhir mostra com clareza quase cirúrgica, esse disparo não é apenas o clímax de uma desavença pessoal: é a materialização de um sistema que naturaliza o medo e legitima a violência.
Muitos críticos chamaram o filme de “distante”, ou até “injusto” com Lorincz. Discordo. A distância de A Vizinha Perfeita é o que o torna ético. Não há dramatização, mas há humanidade — e uma profunda tristeza. Quando vemos Lorincz chorando sozinha na delegacia, não é empatia que sentimos, mas a dimensão trágica de um colapso moral. O crime não é tratado como um ponto final, e sim como o resultado inevitável de uma sucessão de microagressões, de medos e de preconceitos.
O assustador, ao ver as imagens contextualizadas em tempo real, é perceber que Lorincz caminhava para o inevitável, cercada por medo, solidão e preconceitos. A realidade que ela via, contaminada por sua paranoia, era radicalmente oposta à de todos que a cercavam. Por isso, a decisão de não incluir entrevistas nem comentários externos é o golpe de mestre. Gandbhir nos força a olhar e a assistir ao desenrolar dos fatos sem o conforto da mediação. O que emerge é um retrato perturbador do cotidiano americano, onde a lei “Stand Your Ground”, criada para proteger a legítima defesa, se tornou um álibi para o preconceito armado.
O título, A Vizinha Perfeita, carrega ironia e dor, vindo de uma fala da própria Lorincz, que se descrevia como “a vizinha perfeita” em suas ligações para a polícia. Essa perfeição é uma ilusão: a de uma mulher que acreditava estar defendendo sua casa, mas acabou destruindo uma família e uma comunidade.

Após o crime, Susan Lorincz foi presa e acusada de homicídio em segundo grau, agressão e disparo ilegal de arma de fogo. Ela alegou ter agido em legítima defesa, invocando a polêmica lei da Flórida, mas os promotores rejeitaram a justificativa, considerando que Owens estava desarmada e que os tiros foram disparados através de uma porta trancada. Lorincz aguarda julgamento, detida sem direito à fiança, e o caso segue como símbolo das brechas legais que tornam a violência racial recorrente e impune.
Talvez o maior mérito do documentário seja expor o que a sociedade ainda insiste em normalizar: o racismo cotidiano, a paranoia branca, o peso desigual da justiça. Não há final feliz nem consolo. Só o vazio deixado pela morte de AJ Owens — e a pergunta que ecoa: quantas histórias como essa ainda precisam ser contadas até que deixem de acontecer?
A Vizinha Perfeita é, portanto, mais do que um true crime. É um espelho. Um filme sobre o fracasso coletivo de uma sociedade que se acostumou a viver armada de medo. E, ao fim, o horror maior não está no tiro, mas em tudo o que o antecedeu.
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