As Sombras Reais de Derry: Os Fatos que Inspiraram It, de Stephen King

É sabido que George R. R. Martin gosta de se inspirar em fatos reais da História Medieval para construir o universo brutal e politicamente complexo de Game of Thrones. Já Stephen King é o mestre em observar o cotidiano e transformá-lo em uma infinidade de histórias — que podem ser terror, sobrenatural, psicológico, drama ou até comédia. Como ele mesmo já contou, ao ler uma notícia — local ou distante — costuma fazer uma pergunta simples e poderosa: “e se…?”
Essa pequena chave de imaginação é o motor de sua genialidade. Amando ou não sua obra, é inegável que Stephen King é um dos autores mais talentosos, versáteis e influentes das últimas décadas — alguém que enxerga o extraordinário no banal, e o horror onde ninguém mais olha.

Há quem diga que o horror é apenas imaginação — um refúgio para o medo, um espelho deformado daquilo que nunca poderia acontecer. Mas Stephen King sempre escreveu de outro modo. Em suas histórias, o sobrenatural raramente é o ponto de partida; é a consequência. O mal, para ele, nasce primeiro dentro das pessoas — nas suas omissões, nas suas culpas, nas suas violências disfarçadas de normalidade. Só depois ganha dentes, balões vermelhos e risadas.

It talvez seja o exemplo mais puro disso: uma história que parece impossível e, justamente por isso, é assustadoramente real.

Derry existe

Derry, a cidade fictícia onde o mal desperta a cada 27 anos, é um mosaico de lugares reais. Stephen King a construiu a partir de Bangor, no Maine, onde viveu por décadas. Bangor é uma cidade bonita, com casarões vitorianos, cemitério histórico e ruas silenciosas, mas, para King, ela sempre teve algo de sombrio.

Nos anos 1970, Bangor enfrentava um aumento real de crimes violentos, especialmente desaparecimentos de jovens. Havia também um incômodo racismo velado e um histórico de tragédias esquecidas. Em entrevistas, King contou que a ideia de It surgiu quando pensava em “como seria se algo maligno vivesse nos esgotos” — e percebeu que a maldade humana já estava ali, apenas invisível.

Bangor virou Derry não só pela topografia (ambas têm rios, florestas e uma represa central), mas pelo clima psicológico: o tipo de cidade que parece pacata, mas sobrevive de silêncios.

A cidade que nega: a América e seus crimes esquecidos

Em It, os adultos ignoram o que acontece com as crianças. É uma metáfora dolorosa — e baseada em fatos. King se inspirou na própria história recente dos Estados Unidos, marcada por crimes que chocaram o país, mas foram rapidamente esquecidos.

Um dos elementos mais emblemáticos do livro é o episódio do “Black Spot”, um clube noturno frequentado por soldados negros, incendiado por supremacistas brancos. Essa passagem ecoa tragédias reais, como o massacre de Ocoee, na Flórida (1920), ou o bombardeio de Tulsa (1921) , em que comunidades negras foram destruídas e apagadas da memória coletiva.

King transportou esse horror histórico para Derry, transformando o racismo americano em força sobrenatural. It não cria o ódio — apenas o amplifica.

O resultado é uma cidade que age como o país que a inspirou: negligente, hipócrita e seletivamente cega.

O palhaço assassino da vida real

Se Derry é a América, então Pennywise é o seu rosto pintado. E, como toda máscara, ele também tem origem no real.

Nos anos 1970, os Estados Unidos ficaram aterrorizados pelo caso de John Wayne Gacy, o “Killer Clown”. Gacy se apresentava em festas infantis e eventos beneficentes vestido como “Pogo the Clown”. Era carismático, popular, até admirado — até que se descobriu que ele havia estuprado e assassinado mais de 30 jovens e enterrado os corpos no porão de sua casa.

O caso explodiu na mídia em 1978, justamente quando Stephen King começava a imaginar It. Ele nunca declarou abertamente que Pennywise foi “baseado” em Gacy, mas o próprio admitiu que o crime “roubou dos palhaços a inocência para sempre”.

E é isso que It faz: transforma a figura que representa alegria em símbolo de horror. Pennywise é o palhaço que sorri enquanto mata, um eco direto do medo que tomou conta da América real.

Mas King deu ao palhaço algo que Gacy não tinha: mitologia. Pennywise não é apenas um assassino; é a encarnação de tudo que o mundo tenta varrer para debaixo do tapete. O homem que se esconde atrás da tinta branca e do sorriso falso é, na verdade, o retrato da própria sociedade.

O medo como reflexo do real

O que torna It tão perturbador é que ele não inventa o medo — apenas o reorganiza. As inspirações reais de King formam uma rede que vai muito além do caso Gacy:

  • A crise de desaparecimentos infantis nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980.
  • A violência doméstica e o abuso dentro das casas, representados no relacionamento de Beverly e seu pai.
  • O alcoolismo e o trauma familiar, refletidos em Bill Denbrough e sua culpa pela morte de Georgie.
  • O racismo estrutural, vivido por Mike Hanlon.
  • E o silêncio social — o mesmo que King observava em Bangor, onde crimes aconteciam e ninguém falava.

Tudo isso é real. It apenas deu forma — e dentes — a esses horrores.

O monstro somos nós

King disse certa vez que “os monstros são reais, e os fantasmas também; eles vivem dentro de nós e às vezes vencem.” Essa frase é a chave de It.

O palhaço é o disfarce. O verdadeiro horror é a cidade que o permite existir. Derry é uma metáfora de como a sociedade escolhe o silêncio — e como o mal prospera nesse silêncio. É por isso que It continua assustador, quase quarenta anos depois: porque não fala de magia, fala de comportamento.

O mal que acorda a cada 27 anos é, na verdade, o esquecimento cíclico da humanidade. Quando o trauma é ignorado, ele volta — sempre.

Da realidade ao mito: o gênio da transfiguração

Stephen King tem um dom raro: o de transformar manchetes em mitologia. O assassinato em Bangor, o palhaço assassino de Chicago, o racismo da Nova Inglaterra, o abuso nas famílias, tudo isso, isoladamente, seria o suficiente para um livro policial. Mas King os juntou e fez algo maior: uma fábula moral sobre o medo.

Em It, o sobrenatural não substitui a psicologia; ele a revela. O palhaço, a cidade, os esgotos — são apenas metáforas para o que está escondido em nós mesmos. O mal nunca veio de fora. Ele sempre morou aqui.

O eco em Welcome to Derry

A nova série da Max entende perfeitamente essa herança. Ambientada nos anos 1960 — época em que o medo real estava nas ruas, nas marchas pelos direitos civis, na Guerra Fria, na repressão moral — Welcome to Derry não tenta inventar novas criaturas. Ela busca as origens do medo humano.

Ao voltar no tempo, a série retorna também às fontes do horror americano: o racismo, a culpa, a negação. O verdadeiro “nascimento do mal” não é o de Pennywise — é o momento em que a cidade aprende a fingir que ele não existe.

Quando o horror é apenas o espelho

Tudo em It — os palhaços, os bueiros, os balões vermelhos — é invenção. Mas o que os inspira, infelizmente, é verdadeiro. Stephen King apenas uniu as peças e mostrou o que ninguém queria ver: que o mal, quando ignorado, cria raízes. E quando volta, não o faz como demônio ou fantasma, mas como reflexo. Pennywise é o espelho. E Derry, o nosso lar.


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