O Medo Volta para Casa: A História de It e o Renascimento de Derry

Briguem comigo, mas não sou fã de Stephen King. Respeito, aprecio, mas não amo. Não gosto quando o elemento psicológico tem justificativa “sobrenatural”, como é sua assinatura. Ainda assim, há histórias que parecem nunca nos abandonar — mesmo quando acreditamos ter deixado para trás. It é uma delas.

Desde sua publicação em 1986, o romance tornou-se um espelho de tudo o que nos aterroriza: a infância, o esquecimento, a violência silenciosa que cresce nas pequenas cidades e os monstros que criamos para dar forma ao que não conseguimos nomear. E agora, quase quarenta anos depois, It volta a pulsar em Welcome to Derry, série da Max (antiga HBO Max) que retorna às origens do medo para contar não apenas o nascimento de Pennywise, mas o da própria cidade — e de tudo o que ela escondeu sob o chão.

Derry sempre foi mais do que um cenário. É uma cidade que respira, apodrece e nega. É o retrato de uma América que prefere esquecer, e é justamente esse esquecimento que alimenta o mal. Stephen King nunca escreveu sobre um simples palhaço assassino. It é sobre o que acontece quando uma comunidade inteira decide não olhar. É sobre o medo coletivo transformado em hábito. É sobre o horror do cotidiano travestido de normalidade.

No romance original, acompanhamos o chamado Losers’ Club — sete crianças que se unem pelo instinto de sobrevivência. Bill, Beverly, Ben, Richie, Eddie, Mike e Stan são, cada um à sua maneira, fragmentos de uma mesma dor: o bullying, o abuso, o racismo, a solidão. Em Derry, são as crianças que enxergam o que os adultos fingem não ver. São elas que encontram a criatura que vive nos esgotos — It, o mal em estado puro — e enfrentam o impossível por uma razão simples: ninguém mais o fará.

A história começa com uma cena que se tornou lendária: o pequeno Georgie Denbrough brincando na chuva com um barquinho de papel feito pelo irmão. Quando o brinquedo cai no bueiro, ele encontra Pennywise, o Palhaço Dançarino, que lhe oferece o barquinho de volta. E, num segundo, a infância termina. É o símbolo de tudo que King construiu: o horror que surge onde deveria haver segurança. O monstro que usa o riso para esconder os dentes.

A força de It está na estrutura em espiral. São duas histórias contadas em paralelo: o passado e o presente, a infância e a vida adulta, o trauma e a tentativa de esquecê-lo. Quando os “Otários” derrotam It pela primeira vez, em 1958, juram voltar se ele retornar. E 27 anos depois, em 1985, o ciclo recomeça. O medo retorna, a cidade acorda, e eles voltam para cumprir a promessa. Derry é o espelho do tempo: nada muda, porque ninguém quer mudar. E é isso que mata.

King transforma o medo em metáfora. It não é apenas uma criatura, mas o reflexo do que a humanidade esconde — racismo, homofobia, abuso, violência, descaso. Derry é a América profunda, onde os crimes acontecem à luz do dia e ninguém denuncia. É a cidade que devora os próprios filhos e depois segue em frente, indiferente. Por isso It é uma obra que transcende o gênero de horror: é uma alegoria da memória coletiva e do preço do silêncio.

Nas adaptações, essa ideia se reinventou. A minissérie de 1990, estrelada por Tim Curry, tornou Pennywise um ícone da cultura pop. Já os filmes de Andy Muschietti It: A Coisa (2017) e It: Capítulo 2 (2019) — trouxeram nova energia à história, com visual arrebatador e um elenco afinado. Bill Skarsgård assumiu o papel do palhaço com intensidade rara, transformando a criatura em algo entre o pesadelo infantil e a ironia grotesca. Mas mesmo com o sucesso mundial, uma pergunta persistia: de onde veio Pennywise?

É aí que entra It: Welcome to Derry.

Ambientada em 1962 — vinte e sete anos antes dos eventos do primeiro filme — a série criada por Andy e Barbara Muschietti, ao lado de Jason Fuchs, retorna ao coração da cidade. Mais do que explicar as origens de Pennywise, Welcome to Derry quer mostrar o que tornou possível o nascimento do mal. Quem construiu essa cidade? Quais traumas ela escondeu sob as fundações? E por que, geração após geração, Derry continua sendo o lugar onde as crianças desaparecem e ninguém faz perguntas?

Pennywise está de volta, mais uma vez interpretado por Bill Skarsgård, e o simples anúncio de seu retorno já reacendeu o entusiasmo dos fãs. Mas a série vai além do susto. Ela mergulha nas tensões sociais dos anos 1960 — o racismo, o conservadorismo, o medo das mudanças — e mostra que Derry sempre foi um microcosmo da América. Os criadores prometeram que veremos “o nascimento do mal”, mas o verdadeiro horror talvez seja perceber que ele nunca precisou nascer: sempre esteve ali.

Welcome to Derry não tenta substituir It. Ela expande o universo, como se escavasse o solo sob a cidade e encontrasse camadas de horror ainda mais antigas. As imagens divulgadas já revelam uma atmosfera densa, melancólica, quase elegíaca. A paleta fria, os corredores vazios, os balões vermelhos pairando sobre ruas desertas — tudo parece carregar o peso da memória. É uma estética que combina o sobrenatural com o social, como se cada assombração fosse também uma lembrança reprimida.

A recepção inicial reflete esse equilíbrio entre nostalgia e expectativa. Fãs de King celebram o retorno ao universo de Derry, reconhecendo o cuidado com o material original e o clima de desconforto que a série preserva. A crítica, por outro lado, tem reagido com cautela: há elogios ao tom atmosférico e à reconstrução de época, mas também questionamentos sobre o quanto ainda há a ser revelado. O risco é real — em um mundo saturado de prequelas, Welcome to Derry precisa justificar sua existência sem diluir o mistério. Até agora, os episódios iniciais indicam que ela consegue: o medo está lá, mas também a emoção.

Assistir à série é como revisitar um lugar da infância que você jurava ter esquecido — e perceber que nada mudou. Welcome to Derry é menos sobre monstros e mais sobre a cidade que os cria, o sistema que os alimenta, o medo que os mantém vivos. E talvez seja isso o que torna It eterno: a lembrança de que o mal não morre. Ele apenas dorme, esperando o momento certo para despertar — quando a memória falha, quando o silêncio retorna, quando o medo encontra espaço para crescer de novo.

Em Derry, o mal não vem de fora. Ele é doméstico. E é isso que assusta.

It é o espelho que nos obriga a olhar para dentro — e Welcome to Derry é o reflexo mais nítido desse espelho, agora ampliado pela lente da história e da nostalgia. Stephen King escreveu sobre monstros que saem dos esgotos, mas o verdadeiro terror é o que corre por baixo das ruas, invisível e cotidiano. O que a série faz, brilhantemente, é nos lembrar disso: não é Pennywise que mantém Derry viva, somos nós.

O medo, afinal, sempre volta para casa.


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