Florence Welch: a música como ritual

Há artistas que fazem música; Florence Welch faz rituais. Sua voz não apenas canta — ela invoca, liberta, desafia. O universo de Florence + The Machine é esse lugar sagrado e estranho onde o pop se mistura à literatura, à dança, à arte plástica e ao caos emocional de ser humano.

Ser fã de Florence é ter um gosto adquirido — não porque sua música seja inacessível, mas porque ela se recusa a ser pasteurizada. É emoção sem filtro, poesia em estado bruto. Florence poderia ter ajustado sua arte para ser mais popular, claro. Mas escolheu o risco. Por isso, está na linhagem direta de Kate Bush e Siouxsie Sioux — mulheres que nunca foram moldadas pelo mercado, mas que redefiniram o que o pop pode ser.

Como Siouxsie, Florence abraça o sombrio e o transcende. Como Kate, faz da performance um gesto artístico completo, onde som e imagem são inseparáveis. Seus clipes são poemas visuais; seus álbuns, confissões coreografadas. A cada novo trabalho, Florence se aproxima mais do campo da arte total — a fusão de todas as linguagens para expressar o indizível.

Everybody Scream: o grito que purifica

Seu novo álbum, Everybody Scream (2025), é o ápice dessa entrega. Um disco nascido da dor e da sobrevivência, no qual ela confronta o trauma físico e espiritual com a mesma grandiosidade de sempre — mas agora com uma ferida aberta.

Críticos o descrevem como um “ritual gótico de renascimento”, onde o drama pop encontra o exorcismo emocional. A faixa-título traz versos que soam como uma confissão arrancada do palco: “Blood on the stage / Look at me run myself ragged.” É sobre o preço de ser artista, sobre o que se perde ao se doar tanto — e, ainda assim, escolher seguir.

Com participações de Mitski, Aaron Dessner e Mark Bowen (IDLES), o álbum amplia o universo sonoro de Florence para algo mais denso e orgânico, quase subterrâneo. O resultado é uma obra que soa como tempestade e oração, repleta de percussão ritualística e ecos litúrgicos.

A crítica britânica o chamou de “seu trabalho mais vulnerável e mais corajoso”, enquanto veículos como Consequence e Aftonbladet destacaram sua “força trágica e espiritual”. É o tipo de álbum que não busca ser amado por todos — e por isso mesmo se torna indispensável.

Florence, a sacerdotisa moderna

Há uma beleza em ver Florence Welch seguir desafiando o formato pop. Em uma era de algoritmos e fórmulas, ela permanece devota à emoção e à arte. Cada show é um ritual coletivo; cada canção, uma oferenda.

Se Kate Bush abriu caminho para o inconsciente feminino dançar diante das câmeras, Florence ampliou esse espaço — transformando vulnerabilidade em força e caos em celebração. Sua música não é para consumo; é para vivência.

Porque, no fim, como toda boa herdeira das bruxas da música, Florence não quer apenas que escutemos. Ela quer que sintamos — até o último eco.

Everybody Scream: o grito como ritual de sobrevivência

Depois de transformar a dor em dança em Dance Fever (2022), Florence Welch ressurge ainda mais crua e intensa em Everybody Scream — o sexto álbum de estúdio do Florence + The Machine. O título não é metáfora: é literalmente um grito. E, como toda catarse florenciana, nasce de um corpo que passou pelo limite.

Durante a criação do disco, Florence enfrentou uma gravidez ectópica e uma cirurgia de emergência que quase lhe custou a vida. Ela própria admitiu que compor foi a forma de dar sentido a uma experiência que deixou marcas físicas e espirituais profundas. O álbum nasce do trauma, mas não se rende à dor. É sobre sobreviver ao próprio corpo, transformar o horror em arte e o sofrimento em libertação.

“There was basically an urgency to this record,” contou. “It came out of me in this furious burst.” — Florence Welch

Se Dance Fever era um disco sobre o desejo de movimento, Everybody Scream é sobre o preço desse movimento. É o corpo que dança até o desmaio, a artista que se doa até o esgotamento. O álbum retoma as batidas tribais, os coros litúrgicos e a arquitetura sonora quase barroca que sempre definiram Florence — mas aqui tudo soa mais orgânico, mais denso, mais terreno.

Entre os singles, destacam-se a faixa-título, o pulsante “One of the Greats” e a hipnótica “Sympathy Magic”, cada uma representando um fragmento do exorcismo emocional da artista.

A continuidade e a ruptura

Em muitos sentidos, Everybody Scream conversa com toda a trajetória de Florence. A espiritualidade e o simbolismo corporal de Ceremonials, a introspecção de High as Hope, a energia vital de Dance Fever — tudo ecoa aqui, mas algo mudou.

Se antes Florence buscava redenção através da arte, agora ela busca aceitação. O disco é um rito de passagem: o reconhecimento de que há beleza também no corpo ferido, na voz cansada, na mulher que sobreviveu. É o ponto em que a sacerdotisa mística se torna humana — e, paradoxalmente, mais divina do que nunca.

The Old Religion: o chamado ancestral

Entre as faixas mais poderosas está “The Old Religion”, uma das canções mais espirituais de toda a carreira de Florence. Ela fala de um instinto antigo — uma força interior que desperta quando tentamos demais ser contidos, gentis, controlados. É o momento em que o corpo exige o grito.

“And the old religion humming in your veins,
Some animal instinct starting up again…”

É uma canção sobre reconexão com o selvagem, sobre a mulher que recusa a docilidade e recupera a fúria como forma de liberdade.
Musicalmente, é um transe: começa como oração, termina como possessão. O arranjo cresce, a voz rasga, o tambor ecoa como coração — e a arte se funde ao ritual.

Drink Deep: o feitiço de Siouxsie

“Drink Deep” é puro Siouxsie — e Florence sabe disso. É uma faixa que poderia estar em Juju ou Kaleidoscope, tamanha a intensidade entre o tribal e o sobrenatural. A canção pulsa como um ritual de iniciação, em que a voz de Florence parece conjurar mais do que cantar.

“Drink deep from the dark, my dear / There’s light somewhere in here…”

É uma rendição ao abismo: a coragem de mergulhar no que assusta. “Drink Deep” é a faixa mais pagã do álbum, som de encantamento e de dança sob lua vermelha — herdeira direta das feiticeiras que sempre inspiraram Florence, de Siouxsie a Stevie Nicks.

And Love: o silêncio depois do grito

Se “Everybody Scream” é o exorcismo, “And Love” é a cura.
Uma das canções mais delicadas e sinceras do álbum, talvez de toda a carreira de Florence.
Nela, o grito se dissolve em aceitação: o amor que resta quando a dor se aquieta, o que permanece depois da tempestade.

“And love — not the blaze, but the ember / Not the fight, but the remembering…”

É o fim do ritual. O momento em que a mulher que gritou, dançou e caiu finalmente se levanta.

Music By Men: o feitiço quebrado

Em “Music By Men”, Florence transforma raiva em lucidez.
É um autoexorcismo feminista — um espelho devolvido à indústria que tantas vezes tentou moldar sua voz.

“They said my pain sounds pretty / When filtered through a man’s guitar…”

A canção questiona quem tem o direito de traduzir a dor feminina e o que se perde quando essa dor é domesticada para caber no gosto do outro. É o mesmo gesto de Kate Bush e PJ Harvey: confrontar o sistema de dentro, usando a arte como arma.

“You made me divine, but only in suffering / So now I’m done performing your kind of pain.”

Minimalista no início e grandiosa no fim, a faixa cresce até se tornar uma marcha, reescrevendo os hinos do patriarcado com a própria voz. É libertação coletiva — um “não” em coro.

O fecho do ritual

Com “Music By Men”, Everybody Scream se encerra como começou: com um grito.
Mas agora, não mais de desespero — e sim de consciência.

O álbum é uma espiral: começa no corpo ferido e termina na liberdade.
Em “Drink Deep”, ela mergulha no instinto.
Em “The Old Religion”, reconecta-se com o poder ancestral.
Em “And Love”, encontra serenidade.
E em “Music By Men”, reivindica o direito de ser autora da própria narrativa.

O grito e o legado

Everybody Scream é mais do que um álbum: é uma purificação. Florence Welch não canta sobre dor — ela a atravessa. E, ao fazê-lo, reafirma seu lugar em uma linhagem de mulheres que transformaram vulnerabilidade em poder e som em sobrevivência.

Como Kate Bush, não busca ser compreendida de imediato — quer ser sentida. Como Siouxsie Sioux, não teme a escuridão — a habita, a transforma em linguagem e beleza. Mas Florence é, acima de tudo, uma artista contemporânea, consciente de que vive em um tempo que ainda espera que mulheres sejam mágicas sem jamais se sujarem de sangue.

Everybody Scream é a recusa a essa ideia — o grito do corpo que sangra e, ainda assim, cria.

O disco é pessoal e político, íntimo e cósmico. É sobre corpo, fé, trauma, arte e autoria — sobre quem tem o direito de contar a própria história. Nas faixas “Drink Deep”, “The Old Religion”, “And Love” e “Music By Men”, Florence constrói uma narrativa que começa no instinto, passa pelo rito, alcança o amor e termina na liberdade. É um ciclo de morte e renascimento, de perda e afirmação.

Ao contrário do que se espera das divas do pop, Florence não tenta parecer invencível. Ela mostra o que é ser frágil — e justamente por isso, torna-se indestrutível. A cada disco, despede-se de uma versão de si mesma; a cada performance, deixa o corpo em sacrifício; a cada verso, revela o que outras esconderiam.

Everybody Scream é um trabalho de exorcismo e, ao mesmo tempo, um chamado. Um convite para sentir — profundamente, perigosamente, honestamente.

Em tempos de uniformidade sonora e emocional, Florence Welch continua sendo o lembrete do que a arte pode ser quando se recusa a caber em moldes.

Ela é, sim, herdeira de Siouxsie e de Kate. Mas, com este álbum, Florence Welch finalmente se torna sua própria linhagem.


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