A Dama e o Vagabundo: 70 anos de um clássico eterno

São muitos clássicos da Disney fazedo aniversário em 2025: de Cinderella à Fantasia, mas um dos mais adorados que atravessa gerações sem esforço é A Dama e o Vagabundo (1955). O filme é um romance canino que fala de classe, liberdade e pertencimento com uma doçura que a memória coletiva traduz numa única imagem — dois cães dividindo um prato de espaguete —, enquanto os bastidores revelam a ambição estética e industrial por trás de um clássico. Em 2025, o longa completa 70 anos. Vale revisitar não só a magia, mas o maquinário que a fez possível.

A faísca: um cachorro chamado Lady, um conto de revista e o “algo a mais” de Walt

A gênese é íntima. Joe Grant, artista veterano do estúdio, chegou à Disney com esboços inspirados na sua cocker spaniel Lady e no ciúme que ela demonstrou quando um bebê entrou na família. O olhar do cão como centro emocional da casa era a semente perfeita, mas Walt Disney queria um contraponto. Ele o encontra num conto publicado na Cosmopolitan em 1945, “Happy Dan, the Cynical Dog”, de Ward Greene: um vira-lata esperto, andarilho, o oposto aristocrático de Lady. Daí nasce a equação que sustenta o filme: o conforto domesticado vs. a rua como promessa.

A sala de roteiro evolui essa dualidade ao longo de anos, trocando nomes e funções (o par de gatos siameses teve rascunhos como “Nip and Tuck”; o pretendente de Lady já foi “Hubert”) até a forma final: Lady protegendo a rotina perfeita; Vagabundo, o “pé-na-estrada” que ensina que lares também podem ser escolhidos. Há um detalhe saboroso de processo: Trusty, o bloodhound adorável, chegou a “morrer” em uma versão mais cruenta — foi salvo graças à intuição de que crianças (e adultos) precisavam de reparo depois do susto do rato.

O gesto de gênio que quase não existiu

A cena do espaguete — hoje sinônimo de amor no cinema — quase foi descartada. Walt achava “estranho” cães comendo massa. Frank Thomas, um dos Nine Old Men, animou o momento por conta e risco; o resultado convenceu o próprio Walt. É um bom emblema do filme: romance e timing físico coreografados com precisão musical.

CinemaScope: quando a Disney “abre” a tela e muda a animação

Lady and the Tramp é o primeiro longa animado inteiramente filmado em CinemaScope. Não é detalhe técnico: é linguagem. O quadro amplo obrigou animadores e layout a repensar posição, escala e transição — personagens atravessam ambientes, a cidade respira, as casas vitorianas ganham corpo. Isso elevou o custo e atrasou prazos, mas deu à Disney um verniz cinematográfico novo. Como nem todas as salas exibiam CinemaScope em 1955, o estúdio lança duas versões (widescreen e Academy), redesenhando enquadramentos para cada uma. É logística, mas também curadoria de experiência.

No visual, Claude Coats ancora a estética “turn-of-the-century” americana (varandas, rendilhados, cercas serpentinas), enquanto Eyvind Earle — que mais tarde regeria A Bela Adormecida — contribui com miniaturas de atmosfera para “Bella Notte”. E porque a história é vista “do nível do cão”, Coats manda construir maquetes de interiores para fotografar tudo de baixo, na altura da trufa. A Disney trabalhando no detalhe.

Quem dá voz ao coração

O elenco vocal é uma pequena história da dublagem clássica. Barbara Luddy empresta a Lady sua clareza cristalina; Larry Roberts dá a Vagabundo o sorriso de quem sabe se virar. Bill Thompson multiplica timbres (Jock, Joe, Bull, Dachsie…), Verna Felton é a impaciente Tia Sarah, Bill Baucom o afetivo Trusty, Stan Freberg o castor “assobiado”. E Peggy Lee é um capítulo à parte: canta (“La La Lu”, “He’s a Tramp”, “The Siamese Cat Song”), coescreve as canções com Sonny Burke e dubla Darling, Peg e as siamesas. Décadas depois, a artista travará — e vencerá — uma briga judicial por royalties na era do home video, num caso que se tornaria referência sobre contratos assinados antes do VHS existir.

Música que vira cidade

A partitura de Oliver Wallace é o fio invisível que costura os bairros que Lady e Vagabundo atravessam. O score alterna valsa, marcha, paródia e lirismo, enquanto as canções de Peggy Lee e Burke funcionam como placas de trânsito emocionais: a cantiga de ninar (“La La Lu”), a malícia de Peg (“He’s a Tramp”), o exotismo hoje problemático das siamesas (que a Disney recontextualizaria no live-action de 2019). “Bella Notte”, claro, é o hino que transforma um beco atrás de uma cantina italiana no lugar mais romântico do mundo.

Bastidores, labor e pequenos mitos

Para alcançar naturalismo, animadores estudam cães reais — anatomia de patas, peso, como orelhas “conversam”. Milt Kahl cuida de boa parte dos cachorros (com foco no Vagabundo), John Lounsbery se diverte com Tony e Joe, Wolfgang Reitherman anima as brigas (sim, o rato teve gaiola de referência no estúdio), e Les Clark constrói a delicadeza da Lady filhote. Ken Anderson e companhia ajustam a “geografia” de cidade idealizada, e a fotografia em CinemaScope impõe planificação elegante em vez de cortes frenéticos. É um filme de ação suave.

Lançamento, bilheteria e o nascimento de uma “Disney própria”

Estreia 22 de junho de 1955 nos EUA, já sob o selo de distribuição Buena Vista (a Disney rompendo com a RKO para controlar seus próprios lançamentos). O orçamento na casa dos US$ 4 milhões chega a um acúmulo global estimado em US$ 187 milhões com relançamentos — números que, para um desenho “de costumes”, dizem muito sobre o poder do boca a boca. As reestreias em 1962, 1971, 1980 e 1986 (o aniversário de 25 anos e a febre Disney 80s) renovam o afeto — e o caixa.

No home video, o VHS de 1987 vira terremoto: milhões de cópias, parcerias promocionais (leite, McDonald’s), a percepção de que clássicos de catálogo podem liderar vendas. Foi aí que a disputa de Peggy Lee ganhou manchetes e acabou em jurisprudência: contratos antigos não previam transcrições em fita, tribunais reconheceram o direito da artista e sua participação na receita.

Por que ainda funciona (e por que 70 anos importam)

Porque a história, apesar de simples, é sofisticada no subtexto. Lady é a ideia de lar, rotina e segurança — mas também é a mulher que vê o espaço público com desconfiança, aprende a negociá-lo e volta transformada. Vagabundo é liberdade e risco — e descobre que liberdade, sem vínculos, vira ruído. Ao colocá-los frente a frente, o filme desenha um pacto: escolher um ao outro e um lugar no mundo. O resto são filigranas deliciosas: o castor que, orgulhoso, “cobra” por remover a focinheira; o Trusty que jura ter olfato, perde, recupera — a memória como graça; Tony e Joe cantando como se a cozinha fosse palco.

E há a América idealizada do virar do século: Natal com neve, cercas rendadas, bondinhos, letreiros cursivos — um país que a Disney transformou em sensação tátil e, ao mesmo tempo, em fantasia. É cinema sobre o que lembramos que uma casa pode ser.

Para fechar (com molho de tomate)

Sete décadas depois, A Dama e o Vagabundo segue ensinando que o clássico não precisa de excesso: precisa de olhar. O de Lady, ao reconhecer que cuidado também é escolha. O de Vagabundo, ao compreender que compromisso não é coleira. E o nosso, sempre que aquela massa divide a tela em duas pontas de macarrão que se encontram no meio — porque felicidade, no fim, é isso: um passo adiante do que a gente achava possível.


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