Com a estreia de Nuremberg (2025), dirigido por James Vanderbilt e estrelado por Rami Malek e Russell Crowe, é natural que muitos espectadores confundam o título com o lendário Julgamento em Nuremberg (Judgment at Nuremberg, 1961). O novo filme parte de um ponto de vista diferente — o do psiquiatra Douglas Kelley, encarregado de avaliar a sanidade de líderes nazistas, entre eles Hermann Göring. Já o longa de Stanley Kramer, vencedor de dois Oscars, não se passa nos bastidores, mas no coração do tribunal. É sobre juízes que transformaram a lei em instrumento de genocídio. É o julgamento da consciência, não apenas dos homens.

Para mim, Julgamento em Nuremberg é um dos filmes mais relevantes e mais bem feitos já realizados. Vi incontáveis vezes — e, em cada revisão, descubro novas camadas, da austeridade da direção à humanidade dos silêncios. É um épico jurídico com uma intensidade teatral rara: Spencer Tracy como o juiz Dan Haywood, Burt Lancaster no papel do magistrado nazista Ernst Janning, Maximilian Schell na defesa (performance que lhe rendeu o Oscar), Judy Garland e Montgomery Clift em participações comoventes e Marlene Dietrich como a viúva que tenta sustentar a negação alemã.
O monólogo final de Tracy continua um dos mais potentes da história do cinema. Filmado em uma única tomada, ele resume o peso moral da obra: quando Janning insiste que não tinha conhecimento do que estava acontecendo, o reconhecimento de que “chegou a isso” — o horror — “na primeira vez em que condenou um homem sabendo que ele era inocente”. É o tipo de frase que ecoa muito além da Segunda Guerra; é sobre toda sociedade que, por conveniência, escolhe não ver.
Tive a sorte de assistir ao revival da Broadway, décadas depois, com Maximilian Schell agora no papel de Janning — e não mais do advogado de defesa, Hans Rolfe. Um ciclo perfeito, quase simbólico: o ator que um dia tentou argumentar pela inocência agora encarnava o peso do culpado. O texto, nascido como telefilme de 1959 (Playhouse 90), reencontrava o palco com força renovada. É uma experiência visceral, que devolve ao espectador a sensação de estar dentro de um tribunal moral.

Nos bastidores, o filme de 1961 é uma história de coragem artística e bastidor lendário. Kramer acreditava que o cinema podia — e devia — debater ética. Com orçamento modesto e um elenco estrelado trabalhando por salários simbólicos, a produção reconstruiu os julgamentos com rigor documental. O roteiro de Abby Mann condensou 16 réus em quatro personagens e se inspirou no Katzenberger Trial, caso real que levou à execução de um homem judeu acusado de manter relações com uma jovem ariana. O “caso Feldenstein” do filme é essa história reencenada, símbolo da perversão da justiça nazista.
Há detalhes que ajudam a entender por que o filme soa tão autêntico. As cenas de Montgomery Clift foram quase improvisadas: debilitado, ele lutava para decorar falas, e Kramer decidiu transformar seu nervosismo em parte do personagem. Duvido que consiga manter um olho seco vendo sua atuação.
E Judy Garland, em seu retorno ao cinema dramático após sete anos, filmou suas cenas em apenas 11 dias — e sua vulnerabilidade em tela é pura verdade. Burt Lancaster passa metade do filme em silêncio antes de emergir, num monólogo de dez minutos, gravado também de uma só vez. Marlene Dietrich, sempre perfeccionista, exigiu figurinos de Jean Louis e controle de iluminação em cada take.

O impacto da estreia foi enorme. A première mundial aconteceu em Berlim Ocidental, em dezembro de 1961. Diante das imagens reais dos campos de concentração — exibidas sem filtros no tribunal da ficção —, a plateia alemã saiu em silêncio. Ninguém sabia como aplaudir. Era um filme impossível de ver “apenas como cinema”.
Mesmo nos créditos finais há ironia e lamento: um texto lembra que nenhum dos condenados do julgamento real ainda estava preso quando o filme estreou, como alegou a personagem Hans Rolfe. E a resposta do juiz Haywood ganhou ainda mais peso: libertá-los, poderia até ser lógico, mas “to be logical is not to be right, and nothing on God’s earth would make it right”. O cinema de Kramer sabia usar o próprio desconforto como arma política.
Não é à toa que Julgamento em Nuremberg foi incluído em 2013 no National Film Registry da Biblioteca do Congresso dos EUA. Sua fotografia em preto e branco reforça o clima de clausura moral; os planos fechados fazem o público sentir o peso da palavra “culpa”.
Décadas depois, Nuremberg (2025) retorna ao mesmo cenário, mas troca o tribunal pelo consultório. Se o novo filme tenta entender o que se passa na mente do carrasco, o de 1961 se pergunta como o carrasco nasceu da lei. Um analisa o cérebro; o outro, a espinha moral. E talvez seja por isso que o clássico de Stanley Kramer ainda seja — e continue sendo — o filme definitivo sobre o tema. Porque ele não fala sobre monstros. Fala sobre homens comuns que, por medo ou conveniência, decidiram obedecer.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
