Poucas prisões no Brasil se transformaram em lenda. Tremembé é uma delas. Localizada no interior de São Paulo, a Penitenciária Doutor José Augusto César Salgado — mais conhecida como Tremembé II — começou como uma unidade disciplinar, discreta, quase bucólica. Hoje, tornou-se símbolo de um país fascinado pelos seus próprios monstros. O apelido “presídio dos famosos” nasceu de forma quase acidental, mas se consolidou à medida que criminosos de enorme notoriedade midiática passaram por ali. A cada novo caso, Tremembé deixava de ser apenas um local de cumprimento de pena e se tornava um palco: o último ato da tragédia brasileira.

O mito nasce
Fundada em meados do século XX, a penitenciária de Tremembé integra um complexo prisional maior, com unidades masculinas e femininas. Com o tempo, passou a receber presos considerados “de risco” ou “de repercussão” — figuras cujo nome nos jornais tornava inviável mantê-las em presídios comuns. A estrutura da unidade, menor, mais controlada e considerada “tranquila”, era vista como ideal para proteger detentos conhecidos da vingança de outros presos e também da curiosidade pública.
A fama, porém, cresceu com os nomes que cruzaram seus portões. Em diferentes décadas, Tremembé abrigou Suzane von Richthofen, Daniel e Cristian Cravinhos, Elize Matsunaga, Anna Carolina Jatobá, Alexandre Nardoni, Gil Rugai, Roger Abdelmassih, Lindemberg Alves e, mais recentemente, Robinho. Poucos estiveram ao mesmo tempo na unidade — homens e mulheres são separados —, mas o imaginário popular criou a sensação de que todos dividiam o mesmo pátio, trocavam olhares, criavam alianças e reproduziam, entre muros, os dramas que os tornaram manchetes.
O presídio dos notórios
A convivência entre “celebridades do crime” gerou um fascínio quase mórbido. Suzane von Richthofen chegou à penitenciária em 2006, condenada a 39 anos e 6 meses pelo assassinato dos pais, Manfred e Marísia. Tornou-se, sem querer, o rosto de Tremembé. Seu comportamento exemplar, os estudos, os trabalhos internos e os relacionamentos — inclusive o namoro com Anna Carolina Jatobá dentro da prisão — alimentaram uma curiosidade pública que nunca se esgotou. Suzane saiu em 2023, em regime aberto, e virou personagem recorrente da cultura pop, dos documentários ao cinema.
Poucos anos depois, Elize Matsunaga, condenada por matar e esquartejar o marido Marcos Matsunaga, chegou à mesma unidade. Ambas, Suzane e Elize, chegaram a conviver por um curto período. A imprensa as retratou como antagonistas: duas assassinas célebres sob o mesmo teto, uma relação tensa que a série do Prime Video usa como combustível dramático. Elize saiu em 2022, depois de cumprir dez anos de pena e de protagonizar seu próprio documentário na Netflix.
Também em Tremembé está Anna Carolina Jatobá, condenada, ao lado de Alexandre Nardoni, pela morte da filha Isabella. Cumpre pena desde 2008 e, entre as internas, tornou-se figura de perfil reservado. Na unidade masculina, Daniel e Cristian Cravinhos — os comparsas de Suzane — passaram anos dividindo espaço com nomes como Gil Rugai, Lindemberg Alves e Roger Abdelmassih, todos com histórias que o público conhece quase de cor.
Esse agrupamento improvável — assassinos passionais, abusadores, homicidas e celebridades — fez de Tremembé uma espécie de “microcosmo” do país: um espelho do crime como espetáculo e do fascínio que ele desperta. Não é à toa que, ao longo dos anos, o presídio virou sinônimo de escândalo e curiosidade. Era inevitável que o audiovisual o transformasse em cenário.

Da cela à tela: a gênese da série
A série “Tremembé”, produzida pelo Prime Video e dirigida por Vera Egito, nasceu de um projeto literário do jornalista Ulisses Campbell, autor dos livros Suzane: Assassina e Manipuladora e Elize Matsunaga: A Mulher que Esquartejou o Marido. Campbell documentou a convivência dessas figuras dentro da prisão e inspirou uma narrativa que mistura fato e ficção, reconstruindo episódios reais com liberdade dramática.
A ideia não era apenas revisitar os crimes — já explorados em jornais, filmes e podcasts —, mas mostrar a vida depois do crime: o cotidiano de mulheres e homens célebres que precisam coexistir atrás das grades, cercados por culpa, vaidade, arrependimento e a eterna disputa por poder. É uma série sobre o cárcere, mas também sobre a fama e o desejo de controle.
Estrutura e episódios
A primeira temporada tem cinco episódios de cerca de 50 minutos. Cada capítulo foca um eixo temático que combina a trajetória pessoal dos presos com as dinâmicas da penitenciária:
- “Confia em mim” – apresenta Tremembé como personagem: o presídio em si, as rotinas, as novas chegadas, as hierarquias e o olhar público sobre quem vive ali.
- “Até que a morte nos separe” – mergulha nas histórias de crimes passionais, principalmente Suzane e Elize, contrapondo amor e manipulação.
- “Assassinas na TV” – aborda a forma como a mídia transforma criminosos em produtos, e o quanto essa visibilidade interfere na vida dentro do presídio.
- “Acerto de contas” – o capítulo mais tenso, onde as alianças se rompem e a rivalidade entre presas atinge o limite.
- “Justiça seja feita” – fecha o ciclo com reflexões sobre punição, reabilitação e espetáculo, deixando aberta a possibilidade de uma segunda temporada.
O elenco liderado por Marina Ruy Barbosa (Suzane), Carol Garcia (Elize), Bianca Comparato (Anna Carolina Jatobá) e Felipe Simas (Daniel Cravinhos) assume o desafio de representar personagens reais, com a delicadeza de quem encarna histórias ainda vivas na memória nacional.

A repercussão
Desde o anúncio, “Tremembé” gerou controvérsia. O público se dividiu entre o fascínio pelo elenco e a rejeição ao que muitos consideram exploração do sofrimento alheio. Críticos apontaram que, ao dramatizar casos reais tão recentes, a série corre o risco de glamorizar criminosos. Por outro lado, defensores a veem como retrato simbólico da sociedade brasileira, onde o crime e o espetáculo midiático são inseparáveis.
A imprensa especializada destacou a direção precisa de Vera Egito, que alterna realismo e teatralidade, evitando caricaturas. Visualmente, o presídio é filmado como um organismo vivo, claustrofóbico e silencioso, onde cada gesto se torna ato de sobrevivência. Há ecos de produções como Orange Is the New Black, mas com a densidade e o ritmo próprios da televisão brasileira.
O que a série revela — e o que silencia
Mais do que reencenar crimes, Tremembé expõe o paradoxo entre castigo e espetáculo. A prisão, em teoria, é o espaço do esquecimento; a série transforma esse esquecimento em narrativa. Ao reunir figuras que raramente conviveram no tempo real, o roteiro cria uma alegoria da memória coletiva: o Brasil que condena e consome ao mesmo tempo.
Há momentos de ironia dolorosa — a disputa por quem “sofre mais”, o cálculo das entrevistas, o uso da religião como moeda moral. As personagens, quase todas mulheres, transitam entre a culpa e a autopromoção, entre o arrependimento e a necessidade de continuar sendo vistas. E o espectador, consciente ou não, é cúmplice: assiste, comenta, julga.
Onde estão todos agora
- Suzane von Richthofen: em liberdade desde 2023, vive sob identidade discreta, longe dos holofotes.
- Elize Matsunaga: libertada em 2022, voltou a trabalhar com animais e diz buscar anonimato.
- Anna Carolina Jatobá: continua cumprindo pena em Tremembé, com saídas temporárias sob vigilância.
- Daniel Cravinhos: cumpre regime semiaberto após idas e vindas à prisão.
- Cristian Cravinhos: teve progressão de pena e regressão após infrações; está sob monitoramento judicial.
- Alexandre Nardoni: segue preso na unidade masculina.
- Roger Abdelmassih: cumpria prisão domiciliar até sua morte, em 2023.
- Lindemberg Alves: ainda cumpre pena pelo assassinato de Eloá Pimentel.
- Robinho: transferido para Tremembé II em 2025, onde cumpre pena de 9 anos por estupro coletivo.
A presença — ou a lembrança — de todos esses nomes mantém viva a aura da penitenciária. Mesmo com o anúncio recente de que Tremembé deixará de receber presos de notoriedade pública, a associação permanece: Tremembé é o espelho onde o Brasil encara suas tragédias mais íntimas.

O mito continua
Tremembé, a série, não é apenas uma ficção sobre criminosos. É sobre o Brasil — um país que consome o crime com a mesma intensidade com que o condena. Ao misturar o real e o imaginado, a obra expõe o fascínio pela notoriedade e o vazio moral que a acompanha.
No fim, a prisão de Tremembé — real ou dramatizada — é uma metáfora poderosa: não apenas onde se cumpre pena, mas onde a sociedade deposita suas culpas e curiosidades, esperando que o portão feche e o silêncio comece. Só que o silêncio, em Tremembé, nunca dura muito.
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