Frankenstein: o coração que se parte e segue batendo

O livro que Mary Shelley escreveu com apenas 19 anos não chega a ter 200 páginas (algumas versões comentadas ou ilustradas ampliam o volume), e faz sentido: a proposta pela qual nasceu a história é quase tão lendária quanto o monstro que dela surgiu. Numa noite de 1816, às margens do Lago Genebra, Shelley — acompanhada do marido, Percy, de Lord Byron e de John Polidori — aceitou o desafio de escrever uma história de terror. Dali nasceriam O Vampiro (de Polidori, que inspiraria Drácula) e Frankenstein ou o Moderno Prometeu, o romance que alteraria para sempre os limites da ficção científica e do horror.

Publicado anonimamente em 1818, o livro combina o fascínio romântico pela natureza com o medo moderno da ciência. Shelley discutia temas que ainda hoje incomodam: a arrogância humana diante da criação, a responsabilidade moral do saber e a rejeição ao que é diferente.

Com o cinema, Frankenstein tornou-se um mito visual. E, com ele, o monstro — ou a criatura — ganhou autonomia simbólica. Desde Boris Karloff até agora, cada adaptação reflete o espírito de sua época. A nova versão de Guillermo del Toro se propõe a ser “a definitiva”. O diretor mexicano, sempre apaixonado por monstros solitários, traz para o material uma sensibilidade inegável. Escalar Jacob Elordi como a Criatura é uma decisão curiosa e eficaz: o ator, um dos rostos mais belos de sua geração, surge transformado em algo que provoca compaixão e desconforto, enquanto Oscar Isaac entrega uma das performances mais intensas de sua carreira como Victor Frankenstein — um homem movido por vaidade, inveja e ambição.

A história continua simples e devastadora: um cientista que decide desafiar a morte — e, portanto, desafiar Deus — é punido pelo próprio ato de criação. Sua criatura é rejeitada, agredida e violentada até tornar-se também violenta. Del Toro, como Mary Shelley, deixa claro que o verdadeiro monstro talvez nunca tenha sido o ser disforme, mas o homem que o criou.

O diretor divide o filme em três atos que ecoam a estrutura do romance e, ao contrário da versão grandiosa e barroca de Kenneth Branagh nos anos 1990, aqui o foco está no contraste entre a inocência da Criatura e a brutalidade do criador. Isaac compõe um Frankenstein atormentado desde a infância, moldado por traumas e vaidade. Seu cientista nunca é nobre — é um homem frio, arrogante e indiferente, consumido pela própria fome de poder.

Já a Criatura, interpretada por Elordi, carrega toda a dor do rejeitado. Assim como Robert De Niro na versão de 1994, ele tenta dar humanidade ao “zumbi de coração bom”, e em boa parte consegue. Mas a maquiagem, de borracha lilás e textura plástica, é o ponto fraco de um filme visualmente soberbo. Falta-lhe um toque mais orgânico, algo entre o grotesco e o sublime.

Mia Goth, em mais uma performance intensa, é uma Elizabeth que oscila entre musa e mártir, e David Bradley emociona em todos os segundos como o velho cego que ensina compaixão à Criatura — uma das passagens mais fiéis ao espírito de Shelley.

A trilha sonora de Alexandre Desplat é melancólica, refinada e essencial. Ela embala as ruínas e dá respiro à dor. Já o design de produção e os figurinos são exuberantes — ora góticos, ora etéreos, evocando o romantismo pictórico de Caspar David Friedrich. Cada cena parece uma pintura, cada sombra, um símbolo.

Del Toro é declaradamente “time Criatura”, e tem razão. Mais de dois séculos depois, o alerta de Mary Shelley sobre os limites da ciência e da responsabilidade ética continua assustadoramente atual. Frankenstein criou vida, mas destruiu o que havia de mais humano ao seu redor. O rastro de dor e culpa que Del Toro retrata é o mesmo que Shelley escreveu em 1818.

O toque final é uma escolha de gênio: encerrar o filme com uma citação de Byron — “And thus the heart will break, and brokenly live on.” — é não apenas uma homenagem à gênese da história, mas também uma reflexão sobre o que permanece após a tragédia: a vida continua, mesmo que partida.

Guillermo del Toro transforma a dor em poesia visual. Seu Frankenstein é uma elegia ao desamparo humano, à arrogância divina e à eterna busca por redenção. Uma história que nunca morre.


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