Death by Lightning — a tragédia esquecida que reflete o coração dividido da América

Poucas histórias reais são tão cinematográficas, absurdas e reveladoras quanto a de James A. Garfield, o 20º presidente dos Estados Unidos, e de Charles J. Guiteau, o homem que o matou. Um idealista e um fanático, ligados por acaso e separados por destino, cuja tragédia revelou os vícios e as virtudes da jovem democracia americana.

A nova minissérie da Netflix, Death by Lightning, recria esse episódio esquecido com um rigor histórico impressionante e um olhar contemporâneo. Criada por Mike Makowsky, dirigida por Matt Ross e estrelada por Michael Shannon e Matthew Macfadyen, a produção mistura tragédia, sátira política e reflexão sobre poder e vaidade.

Abertura com o cérebro de um assassino: verdade e símbolo

A série começa com uma imagem que parece ficção: um cérebro humano preservado em formol, em um depósito do governo americano, com uma etiqueta que diz “Charles J. Guiteau.” Um funcionário pergunta: “Quem diabos é esse?” — e, a partir daí, a história se desenrola.

A cena é real. Após o enforcamento de Guiteau, em 30 de junho de 1882, seu corpo foi dissecado por médicos interessados em estudar a mente de um assassino. Partes de seu cérebro foram preservadas e distribuídas entre instituições como o Smithsonian e o National Museum of Health and Medicine, onde ainda hoje existem fragmentos catalogados.

Os médicos da época queriam entender se ele era “louco de nascença” ou simplesmente mau. As análises foram inconclusivas. Hoje, sabemos que Guiteau provavelmente sofria de transtorno delirante crônico ou esquizofrenia paranoide — mas, em 1882, a psiquiatria ainda não tinha ferramentas para compreender o que via.

A decisão de abrir Death by Lightning com essa imagem não é apenas macabra: é um comentário sobre a memória e a curiosidade americana. Mesmo morto, Guiteau virou objeto de estudo, símbolo da relação do país com a loucura, o espetáculo e a punição.

O presidente que acreditava em justiça — e morreu por ela

James A. Garfield nasceu pobre, em uma cabana de madeira em Ohio, em 1831. Filho de agricultores, foi autodidata, pastor, professor e general da União durante a Guerra Civil — o lado que lutou contra a escravidão e pela preservação dos Estados Unidos. Era abolicionista convicto, defensor da educação e do direito ao voto dos ex-escravos.

Garfield acreditava que a política era serviço público, não poder pessoal. Em 1880, foi eleito presidente quase por acidente: durante a convenção republicana, discursou em apoio a outro candidato e, ao final, acabou aclamado como o nome de consenso.

Quando assumiu, em março de 1881, o país ainda tentava cicatrizar as feridas da guerra. Ele defendia a reforma do funcionalismo público, o fim do “spoils system” (em que cargos eram distribuídos como favores políticos), e queria uma administração baseada em mérito — ideias revolucionárias na época.

O presidente é um servidor, não um rei”, resume Shannon em uma entrevista. “E Garfield acreditava nisso com convicção.”

Mas sua integridade atraiu inimigos poderosos, dentro e fora do partido. E também um devoto insano.

Charles J. Guiteau: o fanático que confundiu rejeição com destino

Charles Guiteau é o espelho distorcido de Garfield — e Matthew Macfadyen o interpreta com uma precisão assustadora. Filho de um pai religioso e autoritário, Guiteau passou por colégios religiosos, foi pregador, advogado, jornalista e sempre fracassou.

Nos anos 1870, viveu em uma comuna de “amor livre” chamada Oneida Community, onde foi expulso por preguiça e rejeição — as mulheres o chamavam de “Charles Git-out” (“Caia fora, Charles”).

A partir daí, começou a se considerar um escolhido de Deus. Quando Garfield foi indicado, Guiteau escreveu um discurso a seu favor, imprimiu cópias e passou a acreditar que fora o responsável pela vitória. Convencido de que merecia uma recompensa — um cargo diplomático em Paris —, começou a perseguir o presidente e seus assessores.

Rejeitado, interpretou o “não” como traição. E traição, em sua mente delirante, era pecado que merecia ser punido.

Em 2 de julho de 1881, Guiteau encontrou Garfield na estação ferroviária Baltimore & Potomac, em Washington, e atirou duas vezes.

A segunda bala: a da medicina

Garfield não morreu ali. As balas não atingiram órgãos vitais. Mas os médicos, ao tentar extrair o projétil com instrumentos sujos, provocaram uma infecção generalizada.

Entre os profissionais estava Charles Purvis, o primeiro médico negro a atender um presidente. Ele insistiu para que usassem antissépticos, baseados nas descobertas de Joseph Lister, mas o chefe da equipe, Dr. Bliss, rejeitou a ideia com desprezo: “Não acredito em monstros invisíveis.”

Garfield agonizou por 79 dias, em meio a febre e sofrimento. Hoje, os especialistas concordam: se os médicos tivessem esterilizado as ferramentas, ele teria sobrevivido.

Makowsky resume com uma frase dura e perfeita:

“Guiteau puxou o gatilho, mas quem matou Garfield foi a ignorância.”

O espelho de dois homens

No roteiro e nas atuações, Death by Lightning se equilibra entre drama histórico e fábula moral. Garfield é o homem que quer servir; Guiteau, o que quer ser visto. Um acredita no coletivo; o outro, na própria glória.

Michael Shannon entrega uma atuação monumental, transformando Garfield em um símbolo da decência possível. Há calma, inteligência e dor em cada gesto — o retrato de alguém que, mesmo morrendo, mantém a fé no bem comum.

Matthew Macfadyen é seu oposto absoluto: elétrico, grotesco, patético e comovente. Seu sotaque americano é impecável; sua interpretação, oscilante entre humor e horror. Ele é o bufão que acredita ser gênio, o louco que exige ser canonizado.

Quando finalmente se encontram — Guiteau, suando e chorando, pedindo a Garfield que o ensine a “ser grande também” — o resultado é eletricidade pura. É o encontro entre o ideal e o delírio, e a faísca que dá título à série.

O que houve com o corpo de Guiteau

Enforcado diante da imprensa, Guiteau manteve o ar teatral até o fim. Cantou um hino (“I Am Going to the Lordy”) e sorriu. Após a execução, seu corpo foi entregue aos cientistas.

O cérebro foi retirado, dissecado e preservado em formol. Partes foram enviadas a museus de medicina e ainda estão conservadas, visíveis em frascos de vidro com etiquetas originais. O esqueleto, por anos, foi usado em estudos anatômicos.

A ironia é brutal: o homem que queria ser lembrado virou literalmente objeto de observação — mas sem glória, sem significado.

No episódio final da série, essa imagem retorna. Lucretia Garfield (Betty Gilpin) visita Guiteau na prisão e diz, com firmeza:

“Seu nome não significará nada.”

Essa frase ecoa até a última cena, quando o cérebro preservado reaparece — não como relíquia, mas como lembrete de que a insanidade pode ser estudada, mas nunca justificável.

O legado esquecido de James Garfield

Garfield teve apenas quatro meses de governo, mas seu impacto foi duradouro. Após sua morte, o vice Chester A. Arthur, antes aliado do sistema corrupto que Garfield combatia, aprovou a Lei de Reforma do Serviço Público (Pendleton Act), que criou a base do funcionalismo moderno americano, com concursos e mérito.

Arthur se tornou, ironicamente, o herdeiro de um ideal que não era seu — e reconheceu publicamente que devia isso à influência de Garfield.

Além disso, Garfield inspirou uma nova geração de reformistas e tornou-se símbolo de integridade e do valor do conhecimento. Era um autodidata que falava grego e latim, lia poesia e acreditava na educação como força política.

Mesmo assim, o tempo o apagou. Entre os presidentes assassinados, Lincoln e Kennedy viraram lendas; Garfield, uma nota de rodapé. Death by Lightning tenta corrigir essa injustiça, devolvendo humanidade e importância a um líder que acreditava em decência e ciência em um tempo de fanatismo e ignorância.

Memória, espelhos e relâmpagos

A última cena da série é de uma simplicidade devastadora: Lucretia senta-se à mesa onde o marido trabalhava, cercada pela família, e olha para a cadeira vazia. Ao fundo, a luz parece vir do mesmo raio que deu nome à série.

Makowsky explica: “Ele foi relegado a um rodapé da história, mas eu queria apresentá-lo como o homem que gostaríamos de ter conhecido.

A tragédia de Garfield é, no fundo, uma parábola sobre o presente. O fanatismo ainda fala alto, a ciência ainda é contestada, e o narcisismo continua confundindo visibilidade com valor.

Shannon diz que a mensagem é simples:

“Não há situação que não possa ser ajudada com mais compaixão e empatia.”

E Macfadyen completa:

“Aspirem a ser alguém como Garfield.”

O trovão que ainda ecoa

Death by Lightning não é apenas uma reconstituição histórica: é um diagnóstico sobre o colapso moral de um país e o preço da ignorância.

Garfield acreditava no serviço público como vocação. Guiteau acreditava que a glória era um direito. Entre eles, nasceu — e morreu — a ideia de uma América justa.

O cérebro preservado de Guiteau, em sua jarra de vidro, é a lembrança física de que o fanatismo tem corpo e nome. E o silêncio da cadeira vazia de Garfield é a lembrança de que a razão também morre, quando não é ouvida.

Mais de 140 anos depois, a pergunta de Death by Lightning continua a mesma: quem somos, quando deixamos o relâmpago cair?


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