O nome de Vince Gilligan carrega um peso raro na televisão moderna. Desde Breaking Bad e Better Call Saul, qualquer projeto seu vem cercado de uma expectativa quase reverencial — o que ele fizer, o público sabe que vai carregar densidade moral, estética apurada e personagens que desafiam arquétipos. E é exatamente isso que Pluribus, sua nova série para a Apple TV+, entrega. Só que, desta vez, Gilligan troca o deserto do crime pelo universo da consciência.
A trama se passa em Albuquerque — claro — e acompanha Carol Sturka, interpretada com maestria por Rhea Seehorn. Escritora cínica, solitária e em turnê de lançamento de seu novo livro, Carol volta para casa no meio de uma estranha pandemia que não destrói corpos, mas mentes. Um misterioso sinal de rádio vindo do espaço codifica uma sequência de RNA que se transforma num vírus alienígena. O resultado? A maior parte da humanidade passa a integrar uma “mente coletiva” — uma consciência unificada e, aparentemente, em paz. Só doze pessoas no planeta resistem à infecção, e Carol é uma delas.
A partir desse ponto, Pluribus vira um espelho existencial: o que significa estar sozinha num mundo em que todos pensam e sentem da mesma forma? A solidão é uma maldição — ou a última prova de humanidade? Gilligan transforma a premissa de ficção científica num ensaio sobre identidade e livre-arbítrio. Como nas melhores histórias de seu universo, o que parece um dilema moral individual revela-se uma questão sobre a essência do ser humano.

O novo Vince Gilligan
Nos bastidores, o próprio Gilligan deixou claro que Pluribus nasceu de uma exaustão criativa, ele queria se afastar de vilões, de narrativas sobre culpa e redenção. “Passei anos explorando o pior da natureza humana”, disse em entrevistas. “Agora queria imaginar o que aconteceria se o ser humano se tornasse ‘bom’ — mas à força.”
Com orçamento estimado em mais de US$ 15 milhões por episódio, a série foi filmada novamente em Albuquerque, com a mesma precisão visual e simbólica que tornou icônicas as ruas áridas de Breaking Bad. Só que aqui o deserto não é mais o cenário da decadência moral, é o silêncio cósmico onde a humanidade se dissolve.
A campanha de divulgação foi puro Gilligan: misteriosa e provocativa. Um número de telefone (202-808-3981) apareceu em teasers, levando fãs a uma gravação enigmática, como se fosse um chamado da própria “mente coletiva”. Foi o primeiro sinal de que Pluribus não é só uma série, mas uma experiência imersiva.
Ecos e desvios de Breaking Bad
É impossível assistir sem pensar no legado que a série carrega. Há uma conexão evidente — não narrativa, mas espiritual — com Breaking Bad e Better Call Saul. Rhea Seehorn, que imortalizou Kim Wexler, volta como a alma moral do caos, mas agora num cenário metafísico. Se Kim foi a bússola ética num mundo corrupto, Carol é a fagulha individual num mundo uniformizado.
Gilligan mantém sua obsessão pela transformação. Walter White passou de homem comum a monstro. Carol Sturka vive o caminho inverso: cercada por uma humanidade “perfeita”, é ela quem representa o defeito, o erro, o “bug” da espécie. O dilema de Pluribus é o mesmo de Breaking Bad, só que amplificado: o que nos define como humanos — a consciência coletiva ou o conflito individual?
Visualmente, os paralelos também estão lá. O uso do deserto, as tomadas longas, o humor negro e o olhar clínico sobre a decadência humana — tudo isso permanece, mas agora em outro tom. Se Breaking Bad era adrenalina e destruição, Pluribus é melancolia e contemplação.
A atuação de Rhea Seehorn é um consenso. “Brilhante”, “magnética”, “dolorosamente humana” — são alguns dos adjetivos usados para descrever sua performance. Carol é o tipo de personagem que só Gilligan poderia criar: alguém que observa o apocalipse não com pânico, mas com ironia, como se dissesse “claro que o fim do mundo seria assim”.
O público, especialmente os fãs de Breaking Bad, se dividiu — mas no melhor sentido. Nas redes, muitos descrevem Pluribus como “um Black Mirror mais filosófico” ou “The Leftovers dirigido por um químico existencialista”. Outros admitem que esperavam mais ação, mas se rendem ao clima hipnótico e à força simbólica da história.

A filosofia do “nós”
O título, Pluribus, vem de E pluribus unum — “de muitos, um”. É o lema americano, e Gilligan o transforma numa ironia sobre a própria humanidade. O que acontece quando a promessa de união se torna um pesadelo? Quando a diversidade de pensamentos deixa de existir e tudo se resume a um único ritmo mental?
A série é, portanto, uma meditação sobre o perigo da harmonia absoluta. O que parece paz talvez seja o fim da consciência — e Carol Sturka, com toda sua solidão, torna-se símbolo da resistência à uniformidade. A cena em que ela caminha por uma cidade silenciosa, onde todos olham para o céu num transe sereno, já é uma das imagens mais fortes da temporada.
No fim, Gilligan continua o mesmo — só mais ousado
Mesmo quando abandona o realismo criminal e abraça a ficção científica, Vince Gilligan continua fazendo a mesma pergunta que moveu toda sua obra: o que nos torna humanos? Em Breaking Bad, era o poder e a ambição. Em Pluribus, é o medo de perder o “eu”.
Pluribus é melancólica, inquietante e profundamente humana. É sobre a solidão de quem ainda pensa diferente num mundo que acredita ter encontrado a felicidade. Talvez seja o projeto mais pessoal de Gilligan — e o mais perturbador.
Porque, no fundo, Pluribus não é sobre alienígenas. É sobre nós.
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