Ainda brincava de boneca quando o Brasil ficou chocado com o crime passional na pequena cidade de Búzios, onde a socialite mineira Ângela Diniz, com seis tiros no rosto. O assassino era seu namorado de poucos meses, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, que estava foragido. Em pouco tempo, não se falava de outra coisa: nos jornais, nas rodas de mães e pais, tanto que mesmo criança jamais esqueci dessa história trágica.
Meio século depois do crime, o nome de Ângela ainda provoca incômodo porque também obriga o país a encarar suas próprias sombras: o machismo estrutural, a violência travestida de amor e a cultura de impunidade que transforma a vítima em vilã.

Ângela Maria Fernandes Diniz nasceu em 10 de novembro de 1944, em Curvelo, Minas Gerais, em uma família de elite. Bela, inteligente e dona de um carisma natural, cresceu entre privilégios e expectativas. Casou-se aos 17 anos com o engenheiro Milton Villas Boas, teve três filhos e parecia cumprir o destino de tantas mulheres da época (algo omitido na série da HBO Max, que só mostra sua filha, da mesma forma no filme Angela, da Amazon Prime Video). Mas Ângela sempre foi movida por inquietude. Quando decidiu se separar, em plena década de 1960, desafiou convenções sociais e religiosas que ainda condenavam o divórcio. Ainda hoje, ler suas entrevistas onde fala “sou amarrada no hoje, no agora. Amanhã posso estar em outra”, é moderno 52 anos depois que declarou à Revista Manchete, em 1973.
Ela disse isso quando vivia um escândalo em Belo Horizonte (o assassinato de seu caseiro, cometido por seu namorado, “Tuca”) e logo depois se mudou para o Rio de Janeiro, onde se reinventou como mulher livre. Essa liberdade seria o começo de sua tragédia final. A imprensa a apelidou de “Pantera de Minas”, uma mistura de admiração e misoginia. Frequentava festas, circulava entre intelectuais e empresários, cultivava um estilo de vida independente. O que a sociedade via como escândalo era, na verdade, um ato de coragem: Ângela queria ser dona da própria vida, do próprio corpo, do próprio destino.
Em 1976, Doca Street que era rico, charmoso, herdeiro da elite paulistana. O romance, que começou como paixão, logo se transformou em posse. Doca era ciumento, agressivo, obcecado. No dia 30 de dezembro daquele ano, na casa de praia de Ângela, na Praia dos Ossos, em Búzios, ele atirou quatro vezes nela: três tiros no rosto, um na nuca. Os dois tinham brigado por mais uma crise de ciúmes dele e ela tinha tentado acabar o relacionamento. Como justificativa ele alegou que “perdeu o controle”.

Mas a liberdade feminina, nos anos 1970, ainda era lida como ameaça. Sua imagem foi moldada por colunistas sociais e manchetes sensacionalistas que misturavam fascínio e julgamento moral. Sua reputação já era “perdida”: desquitada, envolvida em assassinato e acusada de sequestro de sua própria filha, Ângela passou a ser tratada como uma mulher “perigosa”, “volúvel”, “sedutora demais”. O estigma da “mulher que provoca” acompanhou-a até o fim.
A violência foi apenas o início. O que se seguiu foi um assassinato simbólico e coletivo. No julgamento de 1979, o país viu a Justiça aceitar a tese da “legítima defesa da honra”, transformando Ângela em culpada por ter provocado Doca e por isso merecido morrer. Sua vida íntima foi exposta como prova, sua liberdade usada contra ela. O tribunal a julgou como mulher, não como vítima. Doca foi condenado a apenas dois anos de prisão e saiu livre.
A reação feminista foi imediata. Nas ruas, ecoava a frase que viraria símbolo de uma era: “Quem ama não mata.” Movimentos de mulheres tomaram praças, universidades, redações. O caso de Ângela Diniz inaugurou uma nova consciência sobre violência doméstica e desigualdade de gênero no Brasil. Em 1981, sob pressão social, Doca foi julgado novamente e condenado a 15 anos de prisão (dos quais cumpriu apenas seis). Viveu o resto da vida em São Paulo e morreu em 2021, aos 86 anos, sendo enterrado sem grande repercussão. Ângela nunca saiu da memória nacional.

As múltiplas versões de Ângela: o que mudou no modo de contar sua história
A história de Ângela Diniz foi contada, distorcida e reinterpretada inúmeras vezes. De símbolo feminista a personagem de ficção, ela se transformou em um espelho da sociedade brasileira — e cada obra sobre sua vida revela o momento histórico em que foi criada.
Os primeiros especiais e documentários sobre o crime surgiram ainda nos anos 1980 e 1990, quando o caso era sinônimo de escândalo. A maioria tratava o assassinato como “crime passional”, termo que perpetuava o mesmo discurso machista dos tribunais. Programas de TV e revistas de época reforçavam a narrativa do “amor que mata”, raramente questionando a estrutura de poder por trás disso. Eram produções feitas por e para homens, nas quais Ângela aparecia como mito, e não como pessoa.
Desde a virada dos anos 2000 que se falava em levar sua história para o cinema novamente, com Deborah Secco no papel principal. Sua história tinha inspirado, entre outras produções, o filme Os Amores da Pantera, de Jece Valadão, lançado em 1977 e o episódio Ângela e Doca, do programa Linha Direta Justiça, exibido na Globo em 2003. Mas foi o podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, que foi ao ar em plena pandemia, que virou febre em 2020.

O podcast marcou uma virada radical. Narrado por Branca Vianna, é considerado uma das mais importantes produções jornalísticas recentes do país. Ao longo de oito episódios, ele desconstrói a narrativa oficial e devolve a voz às mulheres: jornalistas, advogadas, amigas e ativistas que viveram o impacto do crime. O podcast resgata gravações de época, áudios do julgamento e entrevistas inéditas com Doca Street, expondo o absurdo jurídico e cultural da “defesa da honra”.
Praia dos Ossos é mais que uma investigação: é um exercício de memória coletiva e reparação histórica. Pela primeira vez, Ângela não é o corpo morto na praia, mas uma mulher com sonhos, filhos e humanidade. A série sonora ajudou a reacender o debate sobre feminicídio, inspirou teses, artigos e deu origem a novas adaptações audiovisuais.
Em 2023, o longa “Ângela”, dirigido por Hugo Prata e estrelado por Ísis Valverde, assume um tom mais íntimo, visualmente elegante e emocional. O roteiro parte da relação entre Ângela e Doca, mas busca reconstruir o olhar da própria protagonista, algo raro na história das biografias de mulheres assassinadas. O filme evita o espetáculo do crime e foca na vida que precedeu a tragédia: uma mulher cercada de desejos, frustrações e vulnerabilidade. Valverde entrega uma interpretação contida, sem glamourizar o sofrimento, enquanto o filme convida o espectador a entender a violência não como exceção, mas como sintoma de uma sociedade.

E em 2025, a HBO Max estreou a minissérie Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, com Marjorie Estiano como Ângela e Emílio Dantas como Doca. A série assume uma abordagem híbrida: histórica, emocional e política. Estiano, uma das atrizes mais populares e elogiadas no Brasil, imprime complexidade à personagem sem santificá-la, tentando humanizá-la. A direção aposta em uma narrativa paralela entre o crime e suas repercussões, alternando o glamour e a solidão de Ângela com o circo midiático e o escândalo social. É uma obra que dialoga com o presente, incorporando debates contemporâneos sobre feminicídio, mídia e cultura patriarcal.
A plataforma está com os dois primeiros episódios disponíveis quando escrevi essa crítica. Há os mesmos problemas de diálogos teatrais, overacting e uma viagem entre presente e passado que só é possível compreender quem realmente conhece bem a história. Mostrar uma Ângela excessivamente lânguida é cansativo (e machista), mesmo que ela tenha sido uma mulher sexualmente curiosa e liberada.
Até o momento, comparando as duas produções, Ísis Valverde (que é muito parecido com Ângela sem muita necessidade de maquiagem), me parece mais próxima e real, em seus excessos, suas revoltas e sua entrega à uma vida de emoção que acabou sendo destrutiva. Outro porém na série da HBO é o uso da trilha sonora “clipada”, o que seria uma alternativa de contextualizar o tempo interrompe a narrativa (pra ser justa, o filme também usa esse recurso antiquado e desnecessário).
No final, enquanto o filme de Hugo Prata é intimista e o podcast é investigativo, a série da HBO se coloca como reflexiva e simbólica. Ela não apenas reconta o crime, mas discute o mito: a mulher livre e julgada, a sociedade cúmplice, a justiça cega. A escolha de Marjorie Estiano é especialmente feliz, uma atriz que domina o terreno entre força e fragilidade, e que tem toda a oportunidade de conferir a Ângela a dimensão humana que lhe foi negada por tanto tempo. Mesmo com roteiro fraco.

O impacto duradouro
Desde 1976, a história de Ângela Diniz foi transformada em manchete, em causa, em memória e agora em arte. Cada obra — seja jornalística, cinematográfica ou televisiva — revela uma camada do Brasil que ainda luta para compreender a si mesmo. O caso impulsionou o feminismo, inspirou debates legais e, décadas depois, ainda encontra eco na decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2023, de declarar inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, a mesma usada para justificar seu assassinato.
Assistir à série, ouvir o podcast e rever o filme é revisitar não só uma tragédia pessoal, mas a própria trajetória da mulher brasileira. É entender que o Brasil que julgou Ângela Diniz em 1979 ainda sobrevive nas entrelinhas do noticiário atual, onde mulheres continuam sendo culpadas por seus algozes.
Relembrar Ângela é resistir ao esquecimento. Ela foi, acima de tudo, uma mulher que queria viver e por isso foi punida. Será ótimo quando aprendermos a enxergá-la não como “a Pantera de Minas”, mas como o que realmente foi: uma mulher, um símbolo e um alerta permanente.
Porque, quase cinquenta anos depois, o grito ainda é o mesmo — e ainda necessário:
quem ama, não mata.
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