No terceiro episódio de Pluribus, Carol volta para casa. Não para um cenário de destruição, ruínas e violência, mas para algo muito mais inquietante: um apocalipse em que ela continua dormindo na própria cama, bebendo a vodquinha que gosta, comendo o que quer e, principalmente, assistindo TV. O mundo acabou, mas ela ainda tem The Golden Girls em DVD. E isso diz muito sobre quem ela é e sobre o que essa série está querendo discutir.
Logo de cara, o episódio faz essa escolha muito específica: Carol não está zapeando por canais de TV ou navegando em um streaming qualquer. Ela está vendo uma caixinha de DVD, um objeto físico, quase tão “analógico” quanto a noção de individualidade que ela tenta desesperadamente preservar enquanto o resto da humanidade se fundiu num único “nós”. E, aos poucos, fica claro que provavelmente não existem mais emissoras, nem grade de programação, nem a ilusão de estar dividindo o mesmo programa com desconhecidos. O mundo agora é um coro uníssono – exceto por ela, segurando um controle remoto e tentando se convencer de que ainda é possível viver como “pessoa” e não como peça de um organismo.

A granada que não era piada e um título muito literal
O episódio se chama “Grenade” por um motivo bem direto: em mais um momento de ironia desesperada, sufocada pela vigilância carinhosa e opressiva dos Joined, Carol solta que “nada que uma granada não resolvesse”. Ela acha que está apenas desabafando, exagerando, sendo espirituosa no fim do mundo. O coletivo, claro, leva ao pé da letra.
Zosia aparece mais tarde na casa dela com uma granada verdadeira. Eles imaginaram que talvez fosse sarcasmo, mas preferiram não arriscar. É aí que a série resume perfeitamente o paradoxo do hive mind: uma eficiência absurda, uma capacidade assustadora de atender qualquer desejo, e um zelo quase infantil diante da possibilidade de frustrar a única resistente que eles fazem questão de “agradar” enquanto buscam uma forma de absorvê-la.
É engraçado, visualmente criativo, quase cartunesco ver pessoas absolutamente comuns se mobilizando para satisfazer caprichos tão específicos. E é perturbador pelo mesmo motivo. O episódio, aliás, é menos “grandioso” em escala do que os anteriores, o que pode deixar alguns espectadores impacientes. Mas essa redução de espetáculo abre espaço para algo mais incômodo: a rotina do pós-fim-do-mundo de Carol.
Carol, a sobrevivente que prefere reclamar a fazer perguntas
Em vez de investigar a grande conspiração, Carol insiste em fazer aquilo que conhece melhor: beber, remoer, reclamar, resistir pela birra. Ela não confia no que o coletivo contaria se ela perguntasse, então simplesmente não pergunta. Não quer saber por que a tal “fórmula da felicidade eterna” foi enviada à Terra, nem o que exatamente estão construindo enquanto reorganizam a sociedade em silêncio.
No voo de volta, ela tenta um mínimo de conexão com alguém que não esteja plugado na consciência coletiva. Pergunta por outros não infectados que não falem inglês, tentando encontrar algum “par” no pessimismo. Os Joined conectam Carol a um gerente de self storage no Paraguai, outro sobrevivente que tem evitado qualquer contato com eles. Mas a conversa fracassa várias vezes. Ele desliga, se recusa a falar, é grosseiro. Carol insiste, aciona o espanhol aos trancos e barrancos e, numa última tentativa, responde com xingamento. É o tipo de cena em que Pluribus mistura humor, desespero e a constatação triste de que mesmo entre os “livres” não existe exatamente solidariedade.
Frustrada, ela volta para Albuquerque. Para a vodca. Para The Golden Girls. Para a solidão.

O supermercado, os caminhões e a fantasia de ter tudo de volta
É aqui que o episódio oferece uma das imagens mais “espetaculares” da semana – e, ao mesmo tempo, mais reveladoras. Carol tenta fazer compras e descobre que o mercado foi esvaziado. Nada de prateleiras cheias. Toda comida foi centralizada, redistribuída, organizada em nome de uma igualdade que, na prática, apaga qualquer sensação de autonomia.
Ela reclama. Os Joined, prontamente, atendem.
Em pouco tempo, caminhões chegam, pessoas aparecem carregando caixas, o mercado é reposto. Tudo, só para que uma pessoa possa ter a experiência de um “Sprouts do jeito que sempre foi”. É um momento de fantasia quase obscena: a mulher que pode ter tudo, com o mundo inteiro trabalhando sem descanso para que ela não se sinta desconfortável.
É a utopia da eficiência vista do ponto de vista mais egoísta possível – e a série sabe disso. A cena é ao mesmo tempo cômica e profundamente crítica. A pergunta fica no ar: se é preciso mobilizar o planeta para que alguém possa encontrar o próprio iogurte favorito na prateleira, que tipo de felicidade é essa?

Luzes apagadas, cidade em silêncio: o horror por trás da “boa intenção”
Se para Carol a vida ainda tem micro prazeres — beber, ver TV, implicar com tudo — para o coletivo, a lógica é outra. Descobrimos que a cidade inteira é desligada à noite. Sem luz. Sem atividade. Sem nada. Afinal, não há crime, ninguém trabalha de madrugada, então por que gastar energia?
A resposta vem com a sutileza típica do hive: “Você doou duas vezes para a Sierra Club, achamos que você ia apoiar.” Não é que eles estejam escondendo algo maligno, de propósito. Eles simplesmente não veem sentido em manter coisas que só servem à individualidade: uma caminhada noturna, um jogo de tabuleiro, um filme visto de madrugada, o prazer pequeno de estar acordado quando o resto do mundo dorme.
Para Carol – e para quem nos assiste do lado de cá – isso é tão assustador quanto qualquer criatura alienígena. Um mundo sem esses detalhes minúsculos, sem a liberdade de ser específico, estranho, ranzinza, entediado, é um mundo que pode até se dizer “feliz”, mas perdeu quase tudo que faz alguém ser uma pessoa.
Entre boias e conversões: o hive que insiste em “salvar” Carol
Para justificar a insistência em infectá-la, o coletivo primeiro fala em “imperativo biológico”. Não convence. Então muda a metáfora: se você visse alguém se afogando, não jogaria uma boia? Na lógica deles, recusar-se a juntar Carol à hive mind seria o equivalente a deixá-la morrer à vista de todos.
É uma provocação boa porque cutuca exatamente a área em que a série mais quer insistir: e se o que Carol chama de “liberdade” for, em parte, um apego a sofrer? O flashback no hotel de gelo na Noruega reforça isso. Anos antes da invasão, cercada por um cenário deslumbrante, ao lado de Helen, Carol só consegue sentir o frio, o desconforto, a frustração com a posição do livro na lista de mais vendidos. Helen, paciente, amorosa, aponta que aquele lugar é perfeito justamente porque combina com ela: “Você gosta de se sentir mal.”
Ou seja: antes de aliens, antes de sinais vindos do espaço, antes da mente compartilhada, Carol já era uma espécie de colapso ambulante. O hive pode até ser opressor, mas a série sugere que a origem do mal-estar dela é muito mais antiga e íntima.

O que faz a vida valer a pena?
O terceiro episódio de Pluribus diminui o barulho, restringe o movimento e faz algo muito eficiente: aproxima o fim do mundo de um cenário estranhamente familiar. Um DVD rodando numa TV antiga. Uma casa silenciosa. Um mercado sendo reabastecido para uma única cliente. Uma cidade inteira apagada, exceto uma janela acesa onde alguém insiste em continuar assistindo sitcom dos anos 1980.
É nessa escala miúda que o horror se instala: num mundo que diz ter erradicado sofrimento, não cabem as pequenas alegrias de quem gosta de reclamar, de quem precisa de um programa bobo para atravessar a noite, de quem gosta tanto de ser gente que não se contenta em ser apenas parte de um organismo perfeito.
A pergunta que fica ecoando é simples e grandiosa: sem esses prazeres pequenos, quem é que a gente ainda é?
E aí Pluribus volta a ser, silenciosamente, muito perturbadora.
Descubra mais sobre
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
